27 de dezembro de 2018

Robert Browning

Poeta inglรชs nascido em Londres, cujo talento sรณ foi reconhecimento postumamente e produziu uma obra baseada na convicรงรฃo de que a arte tinha valor superior, como expressรฃo mais pura da emoรงรฃo humana, e de que a tarefa do artista seria unir o ideal ao real. De famรญlia rica, estudou para a carreira diplomรกtica mas desistiu para se dedicar apenas ร  literatura. Casou-se com a poetisa Elizabeth Barrett e mudou-se para a Itรกlia (1846), onde passou grande parte da vida, morrendo em Veneza. Entre suas principais obras citam-se Pauline: A Fragment of a Confession (1833), Paracelsus (1835), Sordello (1840), a sรฉrie Bells and Pomegranates (1841-1846) e a mais famosa, The Ring and the Book (1868-1869). Entre seus poemas mais conhecidos estรก o que inspirou Stephen King a escrever a saga “The Dark Tower” (A Torre Negra), “Childe Roland ร  Torre Negra Chegou”. O tรญtulo faz menรงรฃo ร s ultimas palavras do poema, alรฉm de ser uma passagem da peรงa “O Rei Lear” do tambรฉm dramaturgo inglรชs, William Shakespeare. Segue abaixo o poema completo com traduรงรฃo de Fabiano Morais:
Childe Roland ร  Torre Negra chegou 
Robert Browning

I
Primeiro pensei: ele mentiu a cada sentenรงa
O coxo encanecido, com olhos cheios de malรญcia
รvidos por ver nos meus de sua mentira a perรญcia
E com a boca sem conter a alegria intensa
Que repuxava seus cantos na crenรงa
De que o predador outra vez se sacia.
II
Qual outro seria o intuito, com seu cajado?
Qual senรฃo emboscar e laรงar os andarilhos
Que porventura o encontram pelos trilhos
E vรชm pedir direรงรฃo? Que risada mรก eu teria escutado,
quem deixaria meu epitรกfio marcado
por diversรฃo nos terrosos caminhos,
III
Se ao seu conselho eu devesse me desviar
Para aquele curso sinistro que, รฉ sabido,
Esconde a Torre Negra? Porรฉm eu, de boa-fรฉ imbuรญdo,
Tomei o indicado caminho, sem orgulho demonstrar
Nem esperanรงa rediviva ao ver o fim se aproximar,
Mas sim gratidรฃo pela idรฉia de algum fim existir.
IV
Pois, se depois de o mundo todo vagar
Se na minha busca ano a ano estendida
Minha esperanรงa tornou-se uma sombra encardida
E incapaz de com o gozo ruidoso da vitรณria lidar,
A festa no meu coraรงรฃo eu mal pude refrear
Quando este entreviu a batalha perdida.
V
Assim como um doente ร  beira da morte
Jรก parece morto, e pressente o pranto fatal,
e recebe de todos a despedida amical,
E escuta ao longe a saรญda de outro consorte
Para respirar lรก fora, (nรฃo se muda a sorte,
ele diz, e o pesar nรฃo se alivia com o golpe final)
VI
Enquanto outros debatem junto ร s covas
Se hรก espaรงo para o caixรฃo e que hora
ร‰ a mais apropriada para levรก-lo embora,
Sem esquecer dos estandartes, hinos e estolas,
O homem ouve cada uma dessas estรณrias
E, respeitando tanta candura, quer partir sem demora.
VII
Assim, jรก sofro hรก tanto nessa jornada
Jรก ouvi do fracasso o vaticรญnio e a confirmaรงรฃo
Para tantos e tantos companheiros da Afiliaรงรฃo
de cavaleiros que da Torre Negra atendem a chamada,
Que falhar como eles me pareceu a coisa acertada
E a รบnica dรบvida era: nรฃo seria essa minha funรงรฃo?
VIII
Tรฃo quieto quanto o desespero eu dei as costas
ร quele coxo odioso, abandonando sua via
e adentrando o caminho apontado. Todo o dia
havia sido lรบgubre, e as sombras, sobrepostas,
fechavam-se a minha volta, mas uma olhadela torta,
rubra e carrancuda, ele lanรงou ร  planรญcie todavia.
IX
Por Deus! Logo assim que me encontrei
Jurado ร  planรญcie, apรณs nรฃo mais que uma passada,
Parei para um รบltimo olhar ร  seguranรงa da estrada
E nada mais havia, sรณ a planura cinza avistei
Nada senรฃo a vastidรฃo sob o cรฉu do astro rei.
Sem mais a fazer, decidi seguir caminhada.
X
Assim, fui adiante. E creio nunca ter visto
Natureza tรฃo miserรกvel e ignรณbil, onde nada medra:
Pois as flores – ou mesmo um cedro entre a pedra,
Embora murchando como pela sua lei previsto,
Mesmo no abandono perduram, pensaria vocรช;
Descobrem-se tesouros quando a casca quebra.
XI
Mas nรฃo! Penรบria, feiรบra, inรฉrcia
Em condiรงรฃo estranha estรก essa parte da terra
“Veja, ou feche os olhos”, a Natureza berra
“Nรฃo hรก escapatรณria: ela รฉ de todo nรฉscia,
Sรณ o fogo do Julgamento Final trarรก a panacรฉia,
Calcinando o chรฃo e livrando os presos que ele cerra.”
XII
Se havia ali alguma ressequida haste de cardo,
Seus colegas nรฃo se achavam, e o talo estava decepado.
O que fez aqueles buracos e rasgos no folhado
escuro e duro da bardana, tรฃo machucado
que era impossรญvel pensรก-lo regenerado?
Era preciso que um bruto as tivesse pisoteado.
XIII
Quanto ร  relva, era como o cabelo escasso
Dos leprosos; magras lรขminas secas na lama
Que parecia ter por baixo uma sangรผรญnea trama.
Um cavalo cego e rijo, ossos ร  vista, lasso,
Parava ali, estรบpido; havia chegado ร quele pedaรงo:
Rebento que o garanhรฃo do diabo nรฃo reclama!
XIV
Vivo? A meu ver poderia muito bem jรก ter partido,
Com seu pescoรงo rubro, descarnado e macilento.
E os olhos fechados por sob o pรชlo bolorento;
Nunca o grotesco andou ร  desgraรงa tรฃo unido;
E jamais senti por criatura รณdio tรฃo ardido:
Ele deve ser mau para merecer tal sofrimento.
XV
Fecho meus olhos, e os volto para o meu coraรงรฃo,
Como um homem que pede vinho antes de lutar,
Visรฃo mais feliz, de outro tempo, eu quis saborear
Para ficar mais apto a encarar minha missรฃo.
Pensar antes, lutar depois, eis do soldado o bordรฃo:
Um vislumbre do passado pode a tudo acertar.
XVI
Mas nรฃo! Imaginei de Cuthbert a face corada
Em meio a seu adorno de cachos dourados,
Querido amigo, eu quase o senti laรงar meus braรงos
Para me colocar a postos na caminhada
Como ele sempre fez. Ai, noite desgraรงada!
O fogo no meu coraรงรฃo se apagou, deixando-o gelado.
XVII
Giles entรฃo surge – ele que รฉ da honra a alma,
Leal como hรก dez anos, quando tornou-se cavaleiro
Capaz de ousar tudo que ousaria um homem verdadeiro
Mas – argh – a cena se modifica! Um carrasco infama
seu peito com um aviso que para todos informa:
Desprezado e amaldiรงoado; traidor rasteiro.
XVIII
Do que um passado assim, melhor este presente
Que eu volte entรฃo para meu caminho triste
Nenhum som, nada que se veja ao longe em riste.
Aparecerรก morcego ou coruja apรณs o poente?
Perguntei quando algo na planรญcie descrente
capturou e dominou meu pensamento num despiste.
XIX
Um sรบbito cรณrrego atravessava meu caminho
Veio tรฃo inesperado quanto uma cobra
Sem o lento escorrer que a atmosfera desdobra
Poderia ser um banho, com seu burburinho,
Para o casco do demรดnio, a ver seu redemoinho
Negro borbulhar com espuma e faรญsca rubra.
XX
Tรฃo pequeno e ao mesmo tempo tรฃo mau
Amieiros o cercavam, rasteiros e mirrados;
Salgueiros afundavam-se e afogavam-se desesperados
Numa sรญncope muda, num atropelo mortal:
Quem os destruiu foi esse carrasco manancial,
E, fosse ele o que fosse, fluรญa sem ser desviado.
XXI
Bom Deus, ao adentrar seu leito, quanto medo
De pisar o rosto de algum cadรกver humano,
A cada passo – tateando com um ramo
A cata de buracos – seus cabelos entre meus dedos.
Um rato-d’รกgua talvez tenha por acaso lancetado,
Mas, argh, parecia o grito de um menino.
XXII
Estava feliz quando cheguei ao outro lado.
Agora terras melhores me esperam. Vรฃ esperanรงa!
Quais foram os contendores? Qual foi a matanรงa?
Que trotar selvagem pรดde fazer desse solo molhado
Um atoleiro? Sapos em um tanque infectado
Ou gatos selvagens numa cela em incandescรชncia –
XXIII
Assim deve ter sido a luta naquela arena decadente
O que os trouxe atรฉ lรก, se tinham toda a planรญcie?
Nenhuma pegada na direรงรฃo daquela imundรญcie
Nenhuma dela se afastando. Alguma poรงรฃo demente
Agiu em seus cรฉrebros, sem dรบvida, como no da gente
Escrava – judia e cristรฃ – que o turco atiรงava por malรญcia.
XXIV
E alรฉm de tudo – a uma milha -, o que era aquele achado?
Para que mau intuito servia aquela mรกquina, aquela polia –
Um travรฃo, nรฃo uma polia -, aquela grade que fiaria
Corpos humanos como se fossem seda? O ar desonrado
Dos rituais de Tophet, na terra perdido, ou invocado
Para afiar o enferrujado metal da sua gradaria.
XXV
Entรฃo uma terra de galhos, que um dia foi floresta;
Depois algo como um pรขntano; e agora apenas terra dura
Desesperada e acabada (um tolo encontra ventura,
Faz algo e em seguida o destrรณi, seu humor desembesta
E ele o abandona!). Por dez ares, chรฃo que cresta,
Lamaรงal, seixos, areia, e uma esterilidade negra, impura.
XXVI
Agora, pรบstulas inflamam-se em cor forte,
E medonha. Agora, remendos onde a aridez do chรฃo
Tornou-se musgo, ou substรขncias em ebuliรงรฃo;
Surge entรฃo um carvalho, e nele hรก um corte
Como uma boca distorcida que cava seu porte
Num bocejo para a morte, morrendo em seu repuxรฃo.
XXVII
E tรฃo longe como nunca o fim se afigura!
Nada no horizonte senรฃo a noite, nada
Que direcionasse adiante minha passada!
Isso pensei, e surgiu um pรกssaro de imensa negrura
Amigo de Satรฃ, a asa de dragรฃo, na largura,
roรงou meu gorro – talvez esta fosse a guia procurada.
XXVIII
Ao olhar para cima, apesar do anoitecer,
Vi com mais clareza. A planรญcie dera lugar
ร s montanhas que a cercavam – nome muito invulgar
Para meras alturas feias e montes a nรฃo mais ver.
Como poderiam elas ter-me surpreendido, tente esclarecer!
Como vencรช-las tambรฉm nรฃo era fรกcil deslindar.
XXIX
Mas ainda assim, pareci reconhecer certo truque
Do qual fui vรญtima, Deus sabe quando –
Talvez em um mau sonho. Aqui estava terminando
O progresso por este caminho. Quando fiz que
desistia, mais uma vez, soou um clique
Como o de um alรงapรฃo atrรกs de mim se fechando.
XXX
Veio a mim de imediato, como fogo em um milharal,
Era este o lugar! ร€ direita, esses dois morros, agachados,
como dois bรบfalos com os chifres enganchados;
Enquanto ร  esquerda, uma montanha alta… Boรงal,
Imbecil, vacilar logo na hora mais crucial,
Vocรช que treinou uma vida para ter olhos afiados!
XXXI
E se a prรณpria Torre estivesse no centro? Redonda
e atarracada, cega como um coraรงรฃo rasteiro,
Feita de pedra marrom, sem igual no mundo inteiro.
O elfo, caรงoando da tempestade que o ronda,
Aponta ao timoneiro o banco que ninguรฉm sonda.
Ele aporta, por pouco nรฃo rompendo do casco o madeiro.
XXXII
Nรฃo vรช-la? Talvez por conta da noite? – se o dia
Ressurgiu para isto! E antes de partir novamente
O poente brilhou por uma fenda rente:
As colinas, como gigantes caรงadores na tocaia,
Esperando que a presa na armadilha caia –
“Agora ataquem e matem a criatura, inclementes”.
XXXIII
Nรฃo ouvi-la? Com tantos sons ร  volta! O ribombar
dos sinos cada vez mais alto. Nomes nos meus ouvidos
Todos os aventureiros, meus companheiros perdidos –
Como, se um era tรฃo forte, outro de tรฃo corajoso bradar,
Outro tรฃo afortunado, como foram perdidos acabar?
Um instante trazia tantos anos de sofrimentos renascidos.
XXXIV
Ali estavam eles, pelos lados dos montes, unidos
Para assistir meu fim. Eu, uma moldura animada
Para mais um quadro! Numa sรบbita labareda
Eu os vi e reconheci a todos. E, destemido,
Deixei meus lรกbios formarem um bramido:
“Childe Roland ร  Torre Negra chegou”, foi minha chamada