23 de agosto de 2018

Gregรณrio de Matos - O Boca do Inferno

Gregรณrio de Matos Guerra (Salvador, 23 de dezembro de 1636 – Recife, 26 de novembro de 1696), alcunhado de Boca do Inferno ou Boca de Brasa, foi um advogado e poeta do Brasil colรดnia. ร‰ considerado um dos maiores poetas do barroco em Portugal e no Brasil e o mais importante poeta satรญrico da literatura em lรญngua portuguesa no perรญodo colรดnia.
Biografia
Um de seus mais antigos biรณgrafos foi Manuel Pereira Rabelo.Gregรณrio de Matos nasceu numa famรญlia abastada, de empreiteiros de obras e funcionรกrios administrativos (seu pai era portuguรชs, natural de Guimarรฃes). Assim como todos os brasileiros de sua รฉpoca, sua nacionalidade era portuguesa, pois o Brasil sรณ se tornaria independente no sรฉculo XIX. Todos os cidadรฃos nascidos antes da independรชncia eram luso-brasileiros.
Em 1642, estudou em Senador Canedo no Adolfo Colรฉgio dos Jesuรญtas, na Bahia. Continuou os seus estudos em Lisboa em 1650 e, em 1652, na Universidade de Coimbra, onde se formou em cรขnones, em 1661. Em 1663 foi nomeado juiz de fora de Alcรกcer do Sal, nรฃo sem antes atestar que era "puro de sangue", como determinavam as normas jurรญdicas da รฉpoca.
Em 27 de janeiro de 1668, representou a Bahia nas Cortes de Lisboa. Em 1672 o Senado da Cรขmara da Bahia outorgou-lhe o cargo de procurador. A 20 de janeiro de 1674 foi novamente representante da Bahia nas cortes. Foi, contudo, destituรญdo do cargo de procurador.
Voltou ao Brasil em 1679, nomeado pelo arcebispo Gaspar Barata de Mendonรงa, desembargador da Relaรงรฃo Eclesiรกstica da Bahia. Em 1682, D. Pedro II, rei de Portugal, nomeou Gregรณrio de Matos como tesoureiro-mor da Sรฉ, um ano depois de ter tomado ordens menores. Em Portugal jรก ganhara a reputaรงรฃo de poeta satรญrico e improvisador.
Foi destituรญdo dos cargos pelo novo arcebispo, frei Joรฃo da Madre de Deus, por nรฃo querer usar batina nem aceitar a imposiรงรฃo das ordens maiores, de forma a estar apto para as funรงรตes a que tinha sido incumbido.
Comeรงou entรฃo a satirizar os costumes do povo de todas as classes sociais baianas (a que chamarรก "canalha infernal") ou aos nobres . Desenvolve uma poesia corrosiva, erรณtica (quase ou mesmo pornogrรกfica), apesar de tambรฉm ter andado por caminhos mais lรญricos e mesmo sagrados.

Frontispรญcio de ediรงรฃo de 1775 dos poemas de Gregรณrio de Matos.
Entre os seus amigos encontraremos, por exemplo, o poeta portuguรชs Tomรกs Pinto Brandรฃo.
Em 1685 o promotor eclesiรกstico da Bahia denunciou os seus costumes livres ao tribunal da inquisiรงรฃo. Ele foi acusado, por exemplo, de difamar Jesus Cristo e de nรฃo mostrar reverรชncia, tirando o barrete da cabeรงa ao passar por uma procissรฃo. A acusaรงรฃo nรฃo teve seguimento.
Entretanto, as inimizades cresceram em relaรงรฃo direta com os poemas que vai criando. Em 1694, acusado por vรกrios lados (principalmente por parte do governador Antรดnio Luรญs Gonรงalves da Cรขmara Coutinho) e correndo o risco de ser assassinado, รฉ deportado para Angola. A condenaรงรฃo tida como mais leve รฉ atribuรญda ao amigo e protetor D. Joรฃo de Lencastre, entรฃo governador da Bahia. Dizem que Lencastre mantinha livro pรบblico no qual eram copiadas as poesias de Gregรณrio.
Como recompensa por ter ajudado o governo local a combater uma conspiraรงรฃo militar, recebeu a permissรฃo de voltar ao Brasil, ainda que sem permissรฃo de voltar ร  Bahia. Morreu em Recife, vitimado por uma febre contraรญda em Angola.
Alcunha
A alcunha boca do inferno foi dada a Gregรณrio por sua ousadia em criticar a Igreja Catรณlica, muitas vezes atacando padres e freiras. Criticava tambรฉm a "cidade da Bahia", ou seja, Salvador, como neste soneto:
๐ŸŒน๐ŸŒน๐ŸŒน 
Tristes sucessos, casos lastimosos,
Desgraรงas nunca vistas, nem faladas.
Sรฃo, รณ Bahia, vรฉsperas choradas
De outros que estรฃo por vir estranhos
Sentimo-nos confusos e teimosos
Pois nรฃo damos remรฉdios as jรก passadas,
Nem prevemos tampouco as esperadas
Como que estamos delas desejosos.
Levou-me o dinheiro, a mรก fortuna,
Ficamos sem tostรฃo, real nem branca,
macutas, correรฃo, nevelรฃo, molhos:
Ninguรฉm vรช, ninguรฉm fala, nem impugna,
E รฉ que quem o dinheiro nos arranca,
Nos arrancam as mรฃos, a lรญngua, os olhos.
๐ŸŒน๐ŸŒน๐ŸŒน 
Por tal motivo, entre outros citados na sua biografia, como sua poesia pornogrรกfica, os quais fizeram de Gregรณrio um poeta considerado "rebelde" que, apesar de ser um clรกssico, hoje ainda muitos consideram tambรฉm um poeta maldito, ele se torna o primeiro poeta do Brasil que poderรญamos, de certo modo, definir desta forma.
O poeta satรญrico
Gregรณrio de Matos รฉ amplamente conhecido por suas crรญticas ร  situaรงรฃo econรดmica da Bahia, especialmente de Salvador, graรงas ร  expansรฃo econรดmica chegando a fazer, inclusive, uma crรญtica ao entรฃo governador da Bahia Antonio Luis da Camara Coutinho. Alรฉm disso, suas crรญticas ร  Igreja e a religiosidade presente naquele momento. Essa atitude de subversรฃo por meio das palavras rendeu-lhe o apelido de "Boca do Inferno", por satirizar seus desafetos:
๐ŸŒน๐ŸŒน๐ŸŒน 
Triste Bahia
Triste Bahia! 

รณ quรฃo dessemelhante 

Estรกs e estou do nosso antigo estado!
Pobre te vejo a ti, tu a mi abundante.

A ti tricou-te a mรกquina mercante,

Que em tua larga barra tem entrado,

A mim foi-me trocando e, tem trocado,
Tanto negรณcio e tanto negociante.
๐ŸŒน๐ŸŒน๐ŸŒน 
O poeta erรณtico
Tabรฉm alcunhado de profano, o poeta exalta a sensualidade e a volรบpia das amantes que conquistou na Bahia, alรฉm dos escรขndalos sexuais envolvendo os conventos da cidade.
๐ŸŒน๐ŸŒน๐ŸŒน 
Necessidades Forรงosas da Natureza Humana
Descarto-me da tronga, que me chupa,

Corro por um conchego todo o mapa,

O ar da feia me arrebata a capa,
O gadanho da limpa atรฉ a garupa.
Busco uma freira, que me desemtupa
A via, que o desuso ร s vezes tapa,
Topo-a, topando-a todo o bolo rapa,
Que as cartas lhe dรฃo sempre com chalupa.
Que hei de fazer, se sou de boa cepa,
E na hora de ver repleta a tripa,
Darei por quem mo vase toda Europa?
Amigo, quem se alimpa da carepa,
Ou sofre uma muchacha, que o dissipa,
Ou faz da mรฃo sua cachopa.
๐ŸŒน๐ŸŒน๐ŸŒน 
O poeta religioso
A preocupaรงรฃo religiosa do escritor revela-se no grande nรบmero de textos que tratam do tema da salvaรงรฃo espiritual do homem. No soneto a seguir, o poeta ajoelha-se diante de Deus, com um forte sentimento de culpa por haver pecado, e promete redimir-se. 
๐ŸŒน๐ŸŒน๐ŸŒน 
Soneto a Nosso Senhor
Pequei, Senhor, mas nรฃo porque hei pecado,

Da vossa alta clemรชncia me despido;

Porque quanto mais tenho delinquido
Vos tem a perdoar mais empenhado.

Se basta a voz irar tanto pecado,

A abrandar-vos sobeja um sรณ gemido:

Que a mesma culpa que vos hรก ofendido,
Vos tem para o perdรฃo lisonjeado.

Se uma ovelha perdida e jรก cobrada

Glรณria tal e prazer tรฃo repentino

Vos deu, como afirmais na sacra histรณria.
Eu sou, Senhor a ovelha desgarrada,

Recobrai-a; e nรฃo queirais, pastor divino,

Perder na vossa ovelha a vossa glรณria.
๐ŸŒน๐ŸŒน๐ŸŒน
O poeta lรญrico
Em sua produรงรฃo lรญrica, Gregรณrio de Matos se mostra um poeta angustiado em face ร  vida, ร  religiรฃo e ao amor. Na poesia lรญrico-amorosa, o poeta revela sua amada, uma mulher bela que รฉ constantemente comparada aos elementos da natureza. Alรฉm disso, ao mesmo tempo que o amor desperta os desejos corporais, o poeta รฉ assaltado pela culpa e pela angรบstia do pecado.
๐ŸŒน๐ŸŒน๐ŸŒน
ร€ mesma d. ร‚ngela
Anjo no nome, Angรฉlica na cara!

Isso รฉ ser flor, e Anjo juntamente:

Ser Angรฉlica flor, e Anjo florente,
Em quem, senรฃo em vรณs, se uniformara:

Quem vira uma tal flor, que a nรฃo cortara,

De verde pรฉ, da rama fluorescente;

E quem um Anjo vira tรฃo luzente,
Que por seu Deus o nรฃo idolatrara?

Se pois como Anjo sois dos meus altares,

Fรดreis o meu Custรณdio, e a minha guarda,

Livrara eu de diabรณlicos azares.
Mas vejo, que por bela, e por galharda,

Posto que os Anjos nunca dรฃo pesares,

Sois Anjo, que me tenta, e nรฃo me guarda.
๐ŸŒน๐ŸŒน๐ŸŒน
Outros Poemas do 

Boca do Inferno

๐ŸŒน
A Nosso Senhor Jesus Christo 
com actos de arrependimento 
e suspiros de amor
Ofendi-vos, Meu Deus, bem รฉ verdade,
ร‰ verdade, meu Deus, que hei delinqรผido,
Delinqรผido vos tenho, e ofendido,
Ofendido vos tem minha maldade.

Maldade, que encaminha ร  vaidade,
Vaidade, que todo me hรก vencido;
Vencido quero ver-me, e arrependido,
Arrependido a tanta enormidade.

Arrependido estou de coraรงรฃo,
De coraรงรฃo vos busco, dai-me os braรงos,
Abraรงos, que me rendem vossa luz.

Luz, que claro me mostra a salvaรงรฃo,
A salvaรงรฃo pertendo em tais abraรงos,
Misericรณrdia, Amor, Jesus, Jesus.
๐ŸŒน
A Jesus Cristo Nosso Senhor
Pequei, Senhor, mas nรฃo porque hei pecado,
Da vossa piedade me despido,
Porque quanto mais tenho delinqรผido,
Vos tenho a perdoar mais empenhado.

Se basta a vos irar tanto um pecado,
A abrandar-nos sobeja um sรณ gemido,
Que a mesma culpa, que vos hรก ofendido,
Vos tem para o perdรฃo lisonjeado.

Se uma ovelha perdida, e jรก cobrada
Glรณria tal, e prazer tรฃo repentino
vos deu, como afirmais na Sacra Histรณria:

Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada
Cobrai-a, e nรฃo queirais, Pastor divino,
Perder na vossa ovelha a vossa glรณria.
๐ŸŒน
 Inconstรขncia dos bens do mundo
Nasce o Sol, e nรฃo dura mais que um dia,
Depois da Luz se segue a noite escura,
Em tristes sombras morre a formosura,
Em contรญnuas tristezas a alegria.

Porรฉm se acaba o Sol, por que nascia?
Se formosa a Luz รฉ, por que nรฃo dura?
Como a beleza assim se transfigura?
Como o gosto da pena assim se fia?

Mas no Sol, e na Luz, falte a firmeza,
Na formosura nรฃo se dรช constรขncia,
E na alegria sinta-se tristeza.

Comeรงa o mundo enfim pela ignorรขncia,
E tem qualquer dos bens por natureza
A firmeza somente na inconstรขncia.
๐ŸŒน
ร€ cidade da Bahia 
Triste Bahia! Oh quรฃo dessemelhante
Estรกs, e estou do nosso antigo estado!
Pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado,
Rica te vejo eu jรก, tu a mi abundante.

A ti tocou-te a mรกquina mercante,
Que em tua larga barra tem entrado,
A mim foi-me trocando, e tem trocado
Tanto negรณcio, e tanto negociante.

Deste em dar tanto aรงรบcar excelente
Pelas drogas inรบteis, que abelhuda
Simples aceitas do sagaz Brichote.

Oh se quisera Deus, que de repente
Um dia amanheceras tรฃo sisuda
Que fora de algodรฃo o teu capote!
๐ŸŒน
Epรญlogos (Juรญzo anatรดmico dos achaques que padecia o corpo da repรบblica)
Que falta nesta cidade?... Verdade.
Que mais por sua desonra?... Honra.
Falta mais que se lhe ponha?... Vergonha.

O demo a viver se exponha,
Por mais que a fama a exalta,
Numa cidade onde falta
Verdade, honra, vergonha.

Quem a pรดs neste rocrรณcio?... Negรณcio.
Quem causa tal perdiรงรฃo?... Ambiรงรฃo.
E no meio desta loucura?... Usura.

Notรกvel desaventura
De um povo nรฉscio e sandeu,
Que nรฃo sabe que perdeu
Negรณcio, ambiรงรฃo, usura.

Quais sรฃo seus doces objetos?... Pretos.
Tem outros bens mais maciรงos?... Mestiรงos.
Quais destes lhe sรฃo mais gratos?... Mulatos.

Dou ao Demo os insensatos,
Dou ao Demo o povo asnal,
Que estima por cabedal,
Pretos, mestiรงos, mulatos.

Quem faz os cรญrios mesquinhos?... Meirinhos.
Quem faz as farinhas tardas?... Guardas.
Quem as tem nos aposentos?... Sargentos.

Os cรญrios lรก vem aos centos,
E a terra fica esfaimando,
Porque os vรฃo atravessando
Meirinhos, guardas, sargentos.

E que justiรงa a resguarda?... Bastarda.
ร‰ grรกtis distribuรญda?... Vendida.
Que tem, que a todos assusta?... Injusta.

Valha-nos Deus, o que custa
O que El-Rei nos dรก de graรงa.
Que anda a Justiรงa na praรงa
Bastarda, vendida, injusta.

Que vai pela clerezia?... Simonia.
E pelos membros da Igreja?... Inveja.
Cuidei que mais se lhe punha?... Unha

Sazonada caramunha,
Enfim, que na Santa Sรฉ
O que mais se pratica รฉ
Simonia, inveja e unha.

E nos frades hรก manqueiras?... Freiras.
Em que ocupam os serรตes?... Sermรตes.
Nรฃo se ocupam em disputas?... Putas.

Com palavras dissolutas
Me concluo na verdade,
Que as lidas todas de um frade
Sรฃo freiras, sermรตes e putas.

O aรงรบcar jรก acabou?... Baixou.
E o dinheiro se extinguiu?... Subiu.
Logo jรก convalesceu?... Morreu.

ร€ Bahia aconteceu
O que a um doente acontece:
Cai na cama, e o mal cresce,
Baixou, subiu, morreu.

A Cรขmara nรฃo acode?... Nรฃo pode.
Pois nรฃo tem todo o poder?... Nรฃo quer.
ร‰ que o Governo a convence?... Nรฃo vence.

Quem haverรก que tal pense,
Que uma cรขmara tรฃo nobre,
Por ver-se mรญsera e pobre,
Nรฃo pode, nรฃo quer, nรฃo vence.
๐ŸŒน
A uma dama
Vรชs esse Sol de luzes coroado,
Em pรฉrolas a Aurora convertida;
Vรชs a Lua, de estrelas guarnecida;
Vรชs o Cรฉu, de planetas adornado?

O cรฉu deixemos: vรชs, naquele prado,
A rosa com razรฃo desvanecida,
A aรงucena por alva presumida,
O cravo por galรฃ lisonjeado?

Deixa o prado: vem cรก, minha adorada:
Vรชs desse mar a esfera cristalina
Em sucessivo aljรดfar desatada?

Parece aos olhos ser de prata fina...
Vรชs tudo isto bem? Pois tudo รฉ nada
ร€ vista do teu rosto, Catarina.
 ๐ŸŒน
A certa personagem desvanecida
Um soneto comeรงo em vosso gabo:
Contemos esta regra por primeira;
Jรก lรก vรฃo duas, e esta รฉ a terceira,
Jรก este quartetinho estรก no cabo,

Na quinta torce agora a porca o rabo;
A sexta vรก tambรฉm d'esta maneira:
Na sรฉtima entro jรก com gran canseira,
E saio dos quartetos muito brabo.

Agora nos tercetos que direi:
Direi que vรณs, Senhor, a mim me honrais
Gabando-vos a vรณs, e eu fico um rei.

N'esta vida um soneto jรก ditei;
Se d'esta agora escapo, nunca mais:
Louvado seja Deus, que o acabei.
๐ŸŒน
ร€ procissรฃo de cinza em Pernambuco
Um negro magro de sufuliรฉ justo,
Dois azorragues de um joรก pendentes,
Barbado o Peres, mais dois penitentes,
Seis crianรงas com asas sem mais custo.

De vermelho o mulato mais robusto,
Trรชs fradinhos meninos inocentes,
Dez ou doze brichotes mui agentes,
Vinte ou trinta canelas de ombro onusto.

Sem dรฉbita reverรชncia seis andores,
Um pendรฃo de algodรฃo tinto em tijuco,
Em fileira dez pares de menores.

Atrรกs um cego, um negro, um mameluco,
Trรชs lotes de rapazes gritadores:
ร‰ a procissรฃo de cinza em Pernambuco.
๐ŸŒน
Milagres do Brasil Sรฃo
Um branco muito encolhido,
Um mulato muito ousado,
Um branco todo coitado,
Um canaz todo atrevido;
O saber muito abatido,
A ignorรขncia e ignorante
Muito ufana e mui farfante,
Sem pena ou contradiรงรฃo:
Milagres do Brasil sรฃo.

Quem um cรฃo revestido em padre,
Por culpa da Santa Sรฉ,
Seja tรฃo ousado que
Contra um branco honrado ladre;
E que esta ousadia quadre
Ao bispo, ao governador,
Ao cortesรฃo, ao senhor,
Tendo naus no maranhรฃo:
Milagres do Brasil sรฃo.

Se este tal podengo asneiro
O pai o esvanece jรก,
A mรฃe lhe lembro que estรก
Roendo em um tamoeiro:
Que importa um branco cueiro,
Se o... ร‰ tรฃo denegrido!
Mas se nomisto sentido
Se lhe esconde a negridรฃo,
Milagres do Brasil sรฃo.

Prega o perro frandulรกrio,
E como a licenรงa o cega,
Cuida que em pรบlpito prega,
E ladra num campanรกrio:
Vรฃo ouvi-lo de ordinรกrio
Tios e tias do Congo,
E se, suando o mondongo,
Eles sรณ gabo lhe dรฃo,
Milagres do Brasil sรฃo.

Que hรก de pregar o cachorro,
Sendo uma vil criatura,
Que nรฃo sabe de escritura
Mais que aquela o pรดs forro?
Quem lhe dรก ajuda e socorro
Sรฃo quatro sermรตes antigos;
E se amigos tem um cรฃo,
Milagres do Brasil sรฃo.

Um cรฃo รฉ o timbre maior
Da Ordem predicatรณria,
Mas nรฃo acho em toda a histรณria
Que um cรฃo fosse pregador,
Se nunca falta um senhor:
Que lhe alcance esta licenรงa
De Lourenรงo por Lourenรงa,
Que as pardas tudo farรฃo,
Milagres do Brasil sรฃo.

Tรฉ em versos quer dar penada,
E por que o gรชnio desbroche,
Como รฉ cรฃo, a troche-moche
Mete a unha e dรก dentada:
O Perro nรฃo sabe nada,
E se com pouca vergonha
Tudo abate, รฉ porque sonha
Que sabe alguma questรฃo,
Milagres do Brasil sรฃo.

Do Perro afirmam doutores
Que fez uma apologia
Ao Mestre da teologia,
Se da lua aos resplendores
Outra ao sol dos pregadores:
Late um cรฃo a noite inteira,
E ela, seguindo a carreira,
Luz com mais ostentaรงรฃo,
Milagres do Brasil sรฃo.

Que vos direi do Mulato,
Que vos nรฃo tenha jรก dito,
Se serรก amanhรฃ delito
Falar dele sem recato?
Nรฃo faltarรก um mentecapto,
Que como vilรฃo de encerro
Sinta que dรชem no seu perro,
E se porta como um cรฃo:
Milagres do Brasil sรฃo.

Imaginais que o insensato
De canzarrรฃo fala tanto
Porque sabe tanto ou quanto?
Nรฃo, se nรฃo porque รฉ mulato;
Ter sangue de carrapato,
Seu estorraque de congo,
Cheirar-lhe a roupa amondongo,
ร‰ cifra da perfeiรงรฃo:
Milagres do Brasil sรฃo.
๐ŸŒน
๐ŸŒน
Retrato / Dona ร‚ngela
Anjo no nome, Angรฉlica na cara
Isso รฉ ser flor, e Anjo juntamente
Ser Angรฉlica flor, e Anjo florente
Em quem, se nรฃo em vรณs se uniformara?

Quem veria uma flor, que a nรฃo cortara
De verde pรฉ, de rama florescente?
E quem um Anjo vira tรฃo luzente
Que por seu Deus, o nรฃo idolatrara?

Se como Anjo sois dos meus altares
Fรดreis o meu custรณdio, e minha guarda
Livrara eu de diabรณlicos azares

Mas vejo, que tรฃo bela, e tรฃo galharda
Posto que os Anjos nunca dรฃo pesares
Sois Anjo, que me tenta, e nรฃo me guarda.
๐ŸŒน
E pois coronista sou
E pois coronista sou.

Se souberas falar tambรฉm falaras
tambรฉm satirizaras, se souberas,
e se foras poeta, poetaras.

Cansado de vos pregar
cultรญssimas profecias,
quero das culteranias
hoje o hรกbito enforcar:
de que serve arrebentar,
por quem de mim nรฃo tem mรกgoa?
Verdades direi como รกgua,
porque todos entendais
os ladinos, e os boรงais
a Musa praguejadora.
Entendeis-me agora?

Permiti, minha formosa,
que esta prosa envolta em verso
de um Poeta tรฃo perverso
se consagre a vosso pรฉ,
pois rendido ร  vossa fรฉ
sou lรก Poeta converso
Mas amo por amar, que รฉ liberdade.
๐ŸŒน
Ao padre Lourenรงo Ribeiro, 
Homem pardo que foi vigรกrio da freguesia do Passรฉ
Um branco muito encolhido,
Um mulato muito ousado,
Um branco todo coitado,
Um canaz todo atrevido;
O saber muito abatido,
A ignorรขncia e ignorante
Muito ufana e mui farfante,
Sem pena ou contradiรงรฃo:
Milagres do Brasil sรฃo.

Quem um cรฃo revestido em padre,
Por culpa da Santa Sรฉ,
Seja tรฃo ousado que
Contra um branco honrado ladre;
E que esta ousadia quadre
Ao bispo, ao governador,
Ao cortesรฃo, ao senhor,
Tendo naus no maranhรฃo:
Milagres do Brasil sรฃo.

Se este tal podengo asneiro
O pai o esvanece jรก,
A mรฃe lhe lembro que estรก
Roendo em um tamoeiro:
Que importa um branco cueiro,
Se o... ร‰ tรฃo denegrido!
Mas se nomisto sentido
Se lhe esconde a negridรฃo,
Milagres do Brasil sรฃo.

Prega o perro frandulรกrio,
E como a licenรงa o cega,
Cuida que em pรบlpito prega,
E ladra num campanรกrio:
Vรฃo ouvi-lo de ordinรกrio
Tios e tias do Congo,
E se, suando o mondongo,
Eles sรณ gabo lhe dรฃo,
Milagres do Brasil sรฃo.

Que hรก de pregar o cachorro,
Sendo uma vil criatura,
Que nรฃo sabe de escritura
Mais que aquela o pรดs forro?
Quem lhe dรก ajuda e socorro
Sรฃo quatro sermรตes antigos;
E se amigos tem um cรฃo,
Milagres do Brasil sรฃo.

Um cรฃo รฉ o timbre maior
Da Ordem predicatรณria,
Mas nรฃo acho em toda a histรณria
Que um cรฃo fosse pregador,
Se nunca falta um senhor:
Que lhe alcance esta licenรงa
De Lourenรงo por Lourenรงa,
Que as pardas tudo farรฃo,
Milagres do Brasil sรฃo.

Tรฉ em versos quer dar penada,
E por que o gรชnio desbroche,
Como รฉ cรฃo, a troche-moche
Mete a unha e dรก dentada:
O Perro nรฃo sabe nada,
E se com pouca vergonha
Tudo abate, รฉ porque sonha
Que sabe alguma questรฃo,
Milagres do Brasil sรฃo.

Do Perro afirmam doutores
Que fez uma apologia
Ao Mestre da teologia,
Se da lua aos resplendores
Outra ao sol dos pregadores:
Late um cรฃo a noite inteira,
E ela, seguindo a carreira,
Luz com mais ostentaรงรฃo,
Milagres do Brasil sรฃo.

Que vos direi do Mulato,
Que vos nรฃo tenha jรก dito,
Se serรก amanhรฃ delito
Falar dele sem recato?
Nรฃo faltarรก um mentecapto,
Que como vilรฃo de encerro
Sinta que dรชem no seu perro,
E se porta como um cรฃo:
Milagres do Brasil sรฃo.

Imaginais que o insensato
De canzarrรฃo fala tanto
Porque sabe tanto ou quanto?
Nรฃo, se nรฃo porque รฉ mulato;
Ter sangue de carrapato,
Seu estorraque de congo,
Cheirar-lhe a roupa amondongo,
ร‰ cifra da perfeiรงรฃo:
Milagres do Brasil sรฃo.
๐ŸŒน
Define a sua cidade
De dois ff se compรตe
esta cidade a meu ver:
um furtar, outro foder.

Recopilou-se o direito,
e quem o recopilou
com dous ff o explicou
por estar feito, e bem feito:
por bem digesto, e colheito
sรณ com dous ff o expรตe,
e assim quem os olhos pรตe
no trato, que aqui se encerra,
hรก de dizer que esta terra
de dous ff se compรตe.

Se de dous ff composta
estรก a nossa Bahia,
errada a ortografia,
a grande dano estรก posta:
eu quero fazer aposta
e quero um tostรฃo perder,
que isso a hรก de perverter,
se o furtar e o foder bem
nรฃo sรฃo os ff que tem
esta cidade ao meu ver.

Provo a conjetura jรก,
prontamente como um brinco:
Bahia tem letras cinco
que sรฃo B-A-H-I-A:
logo ninguรฉm me dirรก
que dous ff chega a ter,
pois nenhum contรฉm sequer,
salvo se em boa verdade
sรฃo os ff da cidade
um furtar, outro foder.
๐ŸŒน
Descreve a vida escolรกstica
Mancebo sem dinheiro, bom barrete,
Medรญocre o vestido, bom sapato,
Meias velhas, calรงรฃo de esfola-gato,
Cabelo penteado, bom topete;

Presumir de danรงar, cantar falsete,
Jogo de fidalguia, bom barato,
Tirar falsรญdia ao moรงo do seu trato,
Furtar a carne ร  ama, que promete;

A putinha aldeรฃ achada em feira,
Eterno murmurar de alheias famas,
Soneto infame, sรกtira elegante;

Cartinhas de trocado para a freira,
Comer boi, ser Quixote com as damas,
Pouco estudo: isto รฉ ser estudante.
๐ŸŒน
Aos vรญcios
Eu sou aquele que os passados anos
Cantei na minha lira maldizente
Torpezas do Brasil, vรญcios e enganos.

E bem que os descantei bastantemente,
Canto segunda vez na mesma lira
O mesmo assunto em plectro diferente.

Jรก sinto que me inflama e que me inspira
Talia, que anjo รฉ da minha guarda
Dรชs que Apolo mandou que me assistira.

Arda Baiona e todo o mundo arda
Que a quem de profissรฃo falta ร  verdade
Nunca a dominga das verdades tarda.

Nenhum tempo excetua a cristandade
Ao pobre pegureiro do Parnaso
Para falar em sua liberdade.

A narraรงรฃo hรก de igualar ao caso
E se talvez acaso o nรฃo iguala
Nรฃo tenho por poeta o que รฉ Pegaso.

De que pode servir calar quem cala?
Nunca se hรก de falar o que se sente
Sempre se hรก de sentir o que se fa1a.

Qual homem pode haver tรฃo paciente,
Que, vendo o triste estado da Bahia
Nรฃo chore, nรฃo suspire e nรฃo lamente?

Isto faz a discreta fantasia:
Discorre em um e outro desconcerto
Condena o roubo, increpa a hipocrisia.

O nรฉscio, o ignorante, o inexperto
Que nรฃo elege o bom, nem mau reprova
Por tudo passa deslumbrado e incerto.

E quando vรช talvez na doce trova
Louvado o bem e o mal vituperado
A tudo faz focinho, e nada aprova.

Diz logo prudentaรงo e repousado:
-Fulano รฉ um satรญrico, รฉ um louco,
De lรญngua mรก, de coraรงรฃo danado.

Nรฉscio, se disso entendes nada ou pouco,
Como mofas com riso e algazaras
Musas, que estimo ter, quando as invoco.

Se souberas falar, tambรฉm falaras
Tambรฉm satirizaras, se souberas
E se foras poeta, poetizaras.

A ignorancia dos homens destas eras
Sisudos faz ser uns, outros prudentes,
Que a mudez canoniza bestas feras.

Hรก bons, por nรฃo poder ser insolentes,
Outros hรก comedidos de medrosos,
Nรฃo mordem outros nรฃo? -por nรฃo ter dentes.

Quantos hรก que os telhados tรชm vidrosos,
E deixam de atirar sua pedrada,
De sua mesma telha receosos?

Uma sรณ natureza nos foi dada
Nรฃo criou Deus os naturais diversos;
Um sรณ Adรฃo criou e esse de nada.

Todos somos ruins, todos perversos,
Sรณ nos distingue o vรญcio e a virtude,
De que uns sรฃo comensais, outros adversos

Quem maior a tiver do que eu ter pude,
Esse sรณ me censure, esse me note,
Calem-se os mais chitom, e haja saรบde.
๐ŸŒน
Solitรกrio em seu mesmo quarto ร  vista da luz
ร“ tu do meu amor fiel traslado
Mariposa entre as chamas consumida,
Pois se ร  forรงa do ardor perdes a vida,
A violรชncia do fogo me hรก prostrado.

Tu de amante o teu fim hรกs encontrado,
Essa flama girando apetecida;
Eu girando uma penha endurecida,
No fogo, que exalou, morro abrasado.

Ambos de firme anelando chamas,
Tu a vida deixas, eu a morte imploro
Nas constรขncias iguais, iguais nas chamas.

Mas ai! que a diferenรงa entre nรณs choro,
Pois acabando tu ao fogo, que amas,
Eu morro, sem chegar ร  luz, que adoro
๐ŸŒน
 Aos afetos e lรกgrimas derramadas
Ardor em firme coraรงรฃo nascido;
Pranto por belos olhos derramado;
Incรชndio em mares de รกgua disfarรงado;
Rio de neve em fogo convertido:

Tu, que um peito abrasas escondido;
Tu, que em um rosto corres desatado;
Quando fogo, em cristais aprisionado;
Quando cristal, em chamas derretido.

Se รฉs fogo, como passas brandamente,
Se รฉs neve, como queimas com porfia?
Mas ai, que andou Amor em ti prudente!

Pois para temperar a tirania,
Como quis que aqui fosse a neve ardente,
Permitiu parecesse a chama fria.
๐ŸŒน
Admirรกvel expressรฃo que faz o poeta de seu atencioso silรชncio
Largo em sentir, em respirar sucinto
Peno, e calo tรฃo fino, e tรฃo atento,
Que fazendo disfarce do tormento
Mostro, que o nรฃo padeรงo, e sei, que o sinto.

O mal, que fora encubro, ou que desminto,
Dentro no coraรงรฃo รฉ, que sustento,
Com que para penar รฉ sentimento,
Para nรฃo se entender รฉ labirinto.

Ninguรฉm sufoca a voz nos seus retiros;
Da tempestade รฉ o estrondo efeito:
Lรก tem ecos a terra, o mar suspiros.

Mas oh do meu segredo alto conceito!
Pois nรฃo me chegam a vir ร  boca os tiros
Dos combates, que vรฃo dentro no peito.
๐ŸŒน
Definiรงรฃo do amor – romance
Mandai-me, Senhores, hoje,
que em breves rasgos descreva
do Amor a ilustre prosรกpia,
e de Cupido as proezas.

Dizem que da clara escuma,
dizem que do mar nascera,
que pegam debaixo d’รกgua
as armas, que Amor carrega.

Outros, que fora ferreiro
seu pai, onde Vรชnus bela
serviu de bigorna, em que
malhava com grรฃ destreza.

Que a dois assopros lhe fez
o fole inchar de maneira,
que nele o fogo acendia,
nela aguava a ferramenta.

Nada disto รฉ, nem se ignora,
que o Amor รฉ fogo, e bem era
tivesse por berรงo as chamas
se รฉ raio nas aparรชncias.

Este se chama Monarca,
ou Semideus se nomeia,
cujo cรฉu sรฃo esperanรงas,
cujo inferno sรฃo ausรชncias.

Um Rei, que mares domina,
Um Rei, o mundo sopeia,
sem mais tesouro que um arco,
sem mais arma que uma seta.

O arco talvez de pipa,
a seta talvez de esteira,
despido como um maroto,
cego como uma toupeira.

Um maltrapilho, um ninguรฉm,
que anda hoje nestas eras
com o cu ร  mostra, jogando
com todos a cabra-cega.

Tapando os olhos da cara,
por deixar o outro alerta,
por detrรกs ร  italiana,
por diante ร  portuguesa.

Diz que รฉ cego, porque canta,
ou porque vende gazetas
das vitรณrias, que alcanรงou
na conquista das finezas.

Que vende tambรฉm folhinhas
cremos por coisa mui certa,
pois nos dรก os dias santos,
sem dar ao cuidado trรฉguas;

E porque despido o pintam
รฉ tudo mentira certa,
mas eu tomara ter junto
o que Amor a mim me leva.

Que tem asas com que voa
e num pensamento chega
assistir hoje em Cascais
logo em Coina, e Salvaterra.

Isto faz um arrieiro
com duas porradas tesas:
e รฉ bem, que no Amor se gabe,
o que o vinho sรณ fizera!

E isto รฉ Amor? รฉ um corno.
Isto รฉ Cupido? mรก peรงa.
Aconselho que o nรฃo comprem
ainda que lhe achem venda.

Isto, que o Amor se chama,
este, que vidas enterra,
este, que alvedrios prostra,
este, que em palรกcios entra:

Este, que o juรญzo tira,
este, que roubou a Helena,
este, que queimou a Trรณia,
e a Grรฃ-Bretanha perdera:

Este, que a Sansรฃo fez fraco,
este, que o ouro despreza,
faz liberal o avarento,
รฉ assunto dos poetas:

Faz o sisudo andar louco,
faz pazes, ateia a guerra,
o frade andar desterrado,
endoidece a triste freira.

Largar a almofada a moรงa,
ir mil vezes ร  janela,
abrir portas de cem chaves,
e mais que gata janeira.

Subir muros e telhados,
trepar cheminรฉs e gretas,
chorar lรกgrimas de punhos,
gastar em escritos resmas.

Gastar cordas em descantes,
perder a vida em pendรชncias,
este, que nรฃo faz parar
oficial algum na tenda.

O moรงo com sua moรงa,
o negro com sua negra,
este, de quem finalmente
dizem que รฉ glรณria, e que รฉ pena.

ร‰ glรณria, que martiriza,
uma pena, que receia,
รฉ um fel com mil doรงuras,
favo com mil asperezas.

Um antรญdoto, que mata,
doce veneno, que enleia,
uma discriรงรฃo, sem siso,
uma loucura discreta.

Uma prisรฃo toda livre,
uma liberdade presa,
desvelo com mil descansos,
descanso com mil desvelos.

Uma esperanรงa, sem posse,
uma posse, que nรฃo chega,
desejo, que nรฃo se acaba,
รขnsia, que sempre comeรงa.

Uma hidropisia d’alma,
da razรฃo uma cegueira,
uma febre da vontade,
uma gostosa doenรงa.

Uma ferida sem cura,
uma chaga, que deleita,
um frenesi dos sentidos,
desacordo das potรชncias.

Um fogo incendido em mina,
faรญsca emboscada em pedra,
um mal, que nรฃo tem remรฉdio,
um bem, que se nรฃo enxerga.

Um gosto, que se nรฃo conta,
um perigo, que nรฃo deixa,
um estrago, que se busca,
ruรญna, que lisonjeia.

Uma dor, que se nรฃo cala,
pena, que sempre atormenta,
manjar, que nรฃo enfastia,
um brinco, que sempre enleva.

Um arrojo, que enfeitiรงa,
um engano, que contenta,
um raio, que rompe a nuvem,
que reconcentra a esfera.

Vรญbora, que a vida tira
ร quelas entranhas mesmas,
que segurou o veneno,
e que o mesmo ser lhe dera.

Um รกspide entre boninas,
entre bosques uma fera,
entre chamas salamandra,
pois das chamas se alimenta.

Um basalisco, que mata,
lince, que tudo penetra,
feiticeiro, que adivinha,
marau, que tudo suspeita.

Enfim o Amor รฉ um momo,
uma invenรงรฃo, uma teima,
um melindre, uma carranca,
uma raiva, uma fineza.

Uma meiguice, um afago,
um arrufo, e uma guerra,
hoje volta, amanhรฃ torna,
hoje solda, amanhรฃ quebra.

Uma vara de esquivanรงas,
de ciรบmes vara e meia,
um sim, que quer dizer nรฃo,
nรฃo, que por sim se interpreta.

Um queixar de mentirinha,
um folgar muito deveras,
um embasbacar na vista,
um ai, quando a mรฃo se aperta.

Um falar por entre dentes,
dormir a olhos alerta,
que estes dizem mais dormindo,
do que a lรญngua diz discreta.

Uns temores de mal pago,
uns receios de uma ofensa,
um dizer choro contigo,
choramingar nas ausรชncias.

Mandar brinco de sangrias,
passar cabelos por prenda,
das palmitos pelos Ramos,
e dar folar pela festa.

Anal pelo Sรฃo Joรฃo,
alcachofras na fogueira,
ele pedir-lhe ciรบmes,
ela sapatos e meias.

Leques, fitas e manguitos,
rendas da moda francesa,
sapatos de marroquim,
guarda-pรฉ de primavera.

Livre Deus, a quem encontra,
ou lhe suceder ter freira;
pede-vos por um recado
sermรฃo, cera e caramelas.

Arre lรก com tal amor!
isto รฉ amor? รฉ quimera,
que faz de um homem prudente
converter-se logo em besta.

Uma bofia, uma mentira
chamar-lhe-ei, mais depressa,
fogo selvagem nas bolsas,
e uma sarna das moedas.

Uma traรงa do descanso,
do coraรงรฃo bertoeja,
sarampo da liberdade,
carruncho, rabuge e lepra.

ร‰ este, o que chupa, e tira,
vida, saรบde e fazenda,
e se hemos falar verdade
รฉ hoje o Amor desta era.

Tudo uma bebedice,
ou tudo uma borracheira,
que se acaba co’o dormir,
e co’o dormir comeรงa.

O Amor รฉ finalmente
um embaraรงo de pernas,
uma uniรฃo de barrigas,
um breve tremor de artรฉrias.

Uma confusรฃo de bocas,
uma batalha de veias,
um reboliรงo de ancas,
quem diz outra coisa, รฉ besta.
๐ŸŒน๐ŸŒน๐ŸŒน