23 de agosto de 2018

Gregório de Matos - O Boca do Inferno

Gregório de Matos Guerra (Salvador, 23 de dezembro de 1636 – Recife, 26 de novembro de 1696), alcunhado de Boca do Inferno ou Boca de Brasa, foi um advogado e poeta do Brasil colônia. É considerado um dos maiores poetas do barroco em Portugal e no Brasil e o mais importante poeta satírico da literatura em língua portuguesa no período colônia.
Biografia
Um de seus mais antigos biógrafos foi Manuel Pereira Rabelo.Gregório de Matos nasceu numa família abastada, de empreiteiros de obras e funcionários administrativos (seu pai era português, natural de Guimarães). Assim como todos os brasileiros de sua época, sua nacionalidade era portuguesa, pois o Brasil só se tornaria independente no século XIX. Todos os cidadãos nascidos antes da independência eram luso-brasileiros.
Em 1642, estudou em Senador Canedo no Adolfo Colégio dos Jesuítas, na Bahia. Continuou os seus estudos em Lisboa em 1650 e, em 1652, na Universidade de Coimbra, onde se formou em cânones, em 1661. Em 1663 foi nomeado juiz de fora de Alcácer do Sal, não sem antes atestar que era "puro de sangue", como determinavam as normas jurídicas da época.
Em 27 de janeiro de 1668, representou a Bahia nas Cortes de Lisboa. Em 1672 o Senado da Câmara da Bahia outorgou-lhe o cargo de procurador. A 20 de janeiro de 1674 foi novamente representante da Bahia nas cortes. Foi, contudo, destituído do cargo de procurador.
Voltou ao Brasil em 1679, nomeado pelo arcebispo Gaspar Barata de Mendonça, desembargador da Relação Eclesiástica da Bahia. Em 1682, D. Pedro II, rei de Portugal, nomeou Gregório de Matos como tesoureiro-mor da Sé, um ano depois de ter tomado ordens menores. Em Portugal já ganhara a reputação de poeta satírico e improvisador.
Foi destituído dos cargos pelo novo arcebispo, frei João da Madre de Deus, por não querer usar batina nem aceitar a imposição das ordens maiores, de forma a estar apto para as funções a que tinha sido incumbido.
Começou então a satirizar os costumes do povo de todas as classes sociais baianas (a que chamará "canalha infernal") ou aos nobres . Desenvolve uma poesia corrosiva, erótica (quase ou mesmo pornográfica), apesar de também ter andado por caminhos mais líricos e mesmo sagrados.

Frontispício de edição de 1775 dos poemas de Gregório de Matos.
Entre os seus amigos encontraremos, por exemplo, o poeta português Tomás Pinto Brandão.
Em 1685 o promotor eclesiástico da Bahia denunciou os seus costumes livres ao tribunal da inquisição. Ele foi acusado, por exemplo, de difamar Jesus Cristo e de não mostrar reverência, tirando o barrete da cabeça ao passar por uma procissão. A acusação não teve seguimento.
Entretanto, as inimizades cresceram em relação direta com os poemas que vai criando. Em 1694, acusado por vários lados (principalmente por parte do governador Antônio Luís Gonçalves da Câmara Coutinho) e correndo o risco de ser assassinado, é deportado para Angola. A condenação tida como mais leve é atribuída ao amigo e protetor D. João de Lencastre, então governador da Bahia. Dizem que Lencastre mantinha livro público no qual eram copiadas as poesias de Gregório.
Como recompensa por ter ajudado o governo local a combater uma conspiração militar, recebeu a permissão de voltar ao Brasil, ainda que sem permissão de voltar à Bahia. Morreu em Recife, vitimado por uma febre contraída em Angola.
Alcunha
A alcunha boca do inferno foi dada a Gregório por sua ousadia em criticar a Igreja Católica, muitas vezes atacando padres e freiras. Criticava também a "cidade da Bahia", ou seja, Salvador, como neste soneto:
🌹🌹🌹 
Tristes sucessos, casos lastimosos,
Desgraças nunca vistas, nem faladas.
São, ó Bahia, vésperas choradas
De outros que estão por vir estranhos
Sentimo-nos confusos e teimosos
Pois não damos remédios as já passadas,
Nem prevemos tampouco as esperadas
Como que estamos delas desejosos.
Levou-me o dinheiro, a má fortuna,
Ficamos sem tostão, real nem branca,
macutas, correão, nevelão, molhos:
Ninguém vê, ninguém fala, nem impugna,
E é que quem o dinheiro nos arranca,
Nos arrancam as mãos, a língua, os olhos.
🌹🌹🌹 
Por tal motivo, entre outros citados na sua biografia, como sua poesia pornográfica, os quais fizeram de Gregório um poeta considerado "rebelde" que, apesar de ser um clássico, hoje ainda muitos consideram também um poeta maldito, ele se torna o primeiro poeta do Brasil que poderíamos, de certo modo, definir desta forma.
O poeta satírico
Gregório de Matos é amplamente conhecido por suas críticas à situação econômica da Bahia, especialmente de Salvador, graças à expansão econômica chegando a fazer, inclusive, uma crítica ao então governador da Bahia Antonio Luis da Camara Coutinho. Além disso, suas críticas à Igreja e a religiosidade presente naquele momento. Essa atitude de subversão por meio das palavras rendeu-lhe o apelido de "Boca do Inferno", por satirizar seus desafetos:
🌹🌹🌹 
Triste Bahia
Triste Bahia! 

ó quão dessemelhante 

Estás e estou do nosso antigo estado!
Pobre te vejo a ti, tu a mi abundante.

A ti tricou-te a máquina mercante,

Que em tua larga barra tem entrado,

A mim foi-me trocando e, tem trocado,
Tanto negócio e tanto negociante.
🌹🌹🌹 
O poeta erótico
Tabém alcunhado de profano, o poeta exalta a sensualidade e a volúpia das amantes que conquistou na Bahia, além dos escândalos sexuais envolvendo os conventos da cidade.
🌹🌹🌹 
Necessidades Forçosas da Natureza Humana
Descarto-me da tronga, que me chupa,

Corro por um conchego todo o mapa,

O ar da feia me arrebata a capa,
O gadanho da limpa até a garupa.
Busco uma freira, que me desemtupa
A via, que o desuso às vezes tapa,
Topo-a, topando-a todo o bolo rapa,
Que as cartas lhe dão sempre com chalupa.
Que hei de fazer, se sou de boa cepa,
E na hora de ver repleta a tripa,
Darei por quem mo vase toda Europa?
Amigo, quem se alimpa da carepa,
Ou sofre uma muchacha, que o dissipa,
Ou faz da mão sua cachopa.
🌹🌹🌹 
O poeta religioso
A preocupação religiosa do escritor revela-se no grande número de textos que tratam do tema da salvação espiritual do homem. No soneto a seguir, o poeta ajoelha-se diante de Deus, com um forte sentimento de culpa por haver pecado, e promete redimir-se. 
🌹🌹🌹 
Soneto a Nosso Senhor
Pequei, Senhor, mas não porque hei pecado,

Da vossa alta clemência me despido;

Porque quanto mais tenho delinquido
Vos tem a perdoar mais empenhado.

Se basta a voz irar tanto pecado,

A abrandar-vos sobeja um só gemido:

Que a mesma culpa que vos há ofendido,
Vos tem para o perdão lisonjeado.

Se uma ovelha perdida e já cobrada

Glória tal e prazer tão repentino

Vos deu, como afirmais na sacra história.
Eu sou, Senhor a ovelha desgarrada,

Recobrai-a; e não queirais, pastor divino,

Perder na vossa ovelha a vossa glória.
🌹🌹🌹
O poeta lírico
Em sua produção lírica, Gregório de Matos se mostra um poeta angustiado em face à vida, à religião e ao amor. Na poesia lírico-amorosa, o poeta revela sua amada, uma mulher bela que é constantemente comparada aos elementos da natureza. Além disso, ao mesmo tempo que o amor desperta os desejos corporais, o poeta é assaltado pela culpa e pela angústia do pecado.
🌹🌹🌹
À mesma d. Ângela
Anjo no nome, Angélica na cara!

Isso é ser flor, e Anjo juntamente:

Ser Angélica flor, e Anjo florente,
Em quem, senão em vós, se uniformara:

Quem vira uma tal flor, que a não cortara,

De verde pé, da rama fluorescente;

E quem um Anjo vira tão luzente,
Que por seu Deus o não idolatrara?

Se pois como Anjo sois dos meus altares,

Fôreis o meu Custódio, e a minha guarda,

Livrara eu de diabólicos azares.
Mas vejo, que por bela, e por galharda,

Posto que os Anjos nunca dão pesares,

Sois Anjo, que me tenta, e não me guarda.
🌹🌹🌹
Outros Poemas do 

Boca do Inferno

🌹
A Nosso Senhor Jesus Christo 
com actos de arrependimento 
e suspiros de amor
Ofendi-vos, Meu Deus, bem é verdade,
É verdade, meu Deus, que hei delinqüido,
Delinqüido vos tenho, e ofendido,
Ofendido vos tem minha maldade.

Maldade, que encaminha à vaidade,
Vaidade, que todo me há vencido;
Vencido quero ver-me, e arrependido,
Arrependido a tanta enormidade.

Arrependido estou de coração,
De coração vos busco, dai-me os braços,
Abraços, que me rendem vossa luz.

Luz, que claro me mostra a salvação,
A salvação pertendo em tais abraços,
Misericórdia, Amor, Jesus, Jesus.
🌹
A Jesus Cristo Nosso Senhor
Pequei, Senhor, mas não porque hei pecado,
Da vossa piedade me despido,
Porque quanto mais tenho delinqüido,
Vos tenho a perdoar mais empenhado.

Se basta a vos irar tanto um pecado,
A abrandar-nos sobeja um só gemido,
Que a mesma culpa, que vos há ofendido,
Vos tem para o perdão lisonjeado.

Se uma ovelha perdida, e já cobrada
Glória tal, e prazer tão repentino
vos deu, como afirmais na Sacra História:

Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada
Cobrai-a, e não queirais, Pastor divino,
Perder na vossa ovelha a vossa glória.
🌹
 Inconstância dos bens do mundo
Nasce o Sol, e não dura mais que um dia,
Depois da Luz se segue a noite escura,
Em tristes sombras morre a formosura,
Em contínuas tristezas a alegria.

Porém se acaba o Sol, por que nascia?
Se formosa a Luz é, por que não dura?
Como a beleza assim se transfigura?
Como o gosto da pena assim se fia?

Mas no Sol, e na Luz, falte a firmeza,
Na formosura não se dê constância,
E na alegria sinta-se tristeza.

Começa o mundo enfim pela ignorância,
E tem qualquer dos bens por natureza
A firmeza somente na inconstância.
🌹
À cidade da Bahia 
Triste Bahia! Oh quão dessemelhante
Estás, e estou do nosso antigo estado!
Pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado,
Rica te vejo eu já, tu a mi abundante.

A ti tocou-te a máquina mercante,
Que em tua larga barra tem entrado,
A mim foi-me trocando, e tem trocado
Tanto negócio, e tanto negociante.

Deste em dar tanto açúcar excelente
Pelas drogas inúteis, que abelhuda
Simples aceitas do sagaz Brichote.

Oh se quisera Deus, que de repente
Um dia amanheceras tão sisuda
Que fora de algodão o teu capote!
🌹
Epílogos (Juízo anatômico dos achaques que padecia o corpo da república)
Que falta nesta cidade?... Verdade.
Que mais por sua desonra?... Honra.
Falta mais que se lhe ponha?... Vergonha.

O demo a viver se exponha,
Por mais que a fama a exalta,
Numa cidade onde falta
Verdade, honra, vergonha.

Quem a pôs neste rocrócio?... Negócio.
Quem causa tal perdição?... Ambição.
E no meio desta loucura?... Usura.

Notável desaventura
De um povo néscio e sandeu,
Que não sabe que perdeu
Negócio, ambição, usura.

Quais são seus doces objetos?... Pretos.
Tem outros bens mais maciços?... Mestiços.
Quais destes lhe são mais gratos?... Mulatos.

Dou ao Demo os insensatos,
Dou ao Demo o povo asnal,
Que estima por cabedal,
Pretos, mestiços, mulatos.

Quem faz os círios mesquinhos?... Meirinhos.
Quem faz as farinhas tardas?... Guardas.
Quem as tem nos aposentos?... Sargentos.

Os círios lá vem aos centos,
E a terra fica esfaimando,
Porque os vão atravessando
Meirinhos, guardas, sargentos.

E que justiça a resguarda?... Bastarda.
É grátis distribuída?... Vendida.
Que tem, que a todos assusta?... Injusta.

Valha-nos Deus, o que custa
O que El-Rei nos dá de graça.
Que anda a Justiça na praça
Bastarda, vendida, injusta.

Que vai pela clerezia?... Simonia.
E pelos membros da Igreja?... Inveja.
Cuidei que mais se lhe punha?... Unha

Sazonada caramunha,
Enfim, que na Santa Sé
O que mais se pratica é
Simonia, inveja e unha.

E nos frades há manqueiras?... Freiras.
Em que ocupam os serões?... Sermões.
Não se ocupam em disputas?... Putas.

Com palavras dissolutas
Me concluo na verdade,
Que as lidas todas de um frade
São freiras, sermões e putas.

O açúcar já acabou?... Baixou.
E o dinheiro se extinguiu?... Subiu.
Logo já convalesceu?... Morreu.

À Bahia aconteceu
O que a um doente acontece:
Cai na cama, e o mal cresce,
Baixou, subiu, morreu.

A Câmara não acode?... Não pode.
Pois não tem todo o poder?... Não quer.
É que o Governo a convence?... Não vence.

Quem haverá que tal pense,
Que uma câmara tão nobre,
Por ver-se mísera e pobre,
Não pode, não quer, não vence.
🌹
A uma dama
Vês esse Sol de luzes coroado,
Em pérolas a Aurora convertida;
Vês a Lua, de estrelas guarnecida;
Vês o Céu, de planetas adornado?

O céu deixemos: vês, naquele prado,
A rosa com razão desvanecida,
A açucena por alva presumida,
O cravo por galã lisonjeado?

Deixa o prado: vem cá, minha adorada:
Vês desse mar a esfera cristalina
Em sucessivo aljôfar desatada?

Parece aos olhos ser de prata fina...
Vês tudo isto bem? Pois tudo é nada
À vista do teu rosto, Catarina.
 🌹
A certa personagem desvanecida
Um soneto começo em vosso gabo:
Contemos esta regra por primeira;
Já lá vão duas, e esta é a terceira,
Já este quartetinho está no cabo,

Na quinta torce agora a porca o rabo;
A sexta vá também d'esta maneira:
Na sétima entro já com gran canseira,
E saio dos quartetos muito brabo.

Agora nos tercetos que direi:
Direi que vós, Senhor, a mim me honrais
Gabando-vos a vós, e eu fico um rei.

N'esta vida um soneto já ditei;
Se d'esta agora escapo, nunca mais:
Louvado seja Deus, que o acabei.
🌹
À procissão de cinza em Pernambuco
Um negro magro de sufulié justo,
Dois azorragues de um joá pendentes,
Barbado o Peres, mais dois penitentes,
Seis crianças com asas sem mais custo.

De vermelho o mulato mais robusto,
Três fradinhos meninos inocentes,
Dez ou doze brichotes mui agentes,
Vinte ou trinta canelas de ombro onusto.

Sem débita reverência seis andores,
Um pendão de algodão tinto em tijuco,
Em fileira dez pares de menores.

Atrás um cego, um negro, um mameluco,
Três lotes de rapazes gritadores:
É a procissão de cinza em Pernambuco.
🌹
Milagres do Brasil São
Um branco muito encolhido,
Um mulato muito ousado,
Um branco todo coitado,
Um canaz todo atrevido;
O saber muito abatido,
A ignorância e ignorante
Muito ufana e mui farfante,
Sem pena ou contradição:
Milagres do Brasil são.

Quem um cão revestido em padre,
Por culpa da Santa Sé,
Seja tão ousado que
Contra um branco honrado ladre;
E que esta ousadia quadre
Ao bispo, ao governador,
Ao cortesão, ao senhor,
Tendo naus no maranhão:
Milagres do Brasil são.

Se este tal podengo asneiro
O pai o esvanece já,
A mãe lhe lembro que está
Roendo em um tamoeiro:
Que importa um branco cueiro,
Se o... É tão denegrido!
Mas se nomisto sentido
Se lhe esconde a negridão,
Milagres do Brasil são.

Prega o perro frandulário,
E como a licença o cega,
Cuida que em púlpito prega,
E ladra num campanário:
Vão ouvi-lo de ordinário
Tios e tias do Congo,
E se, suando o mondongo,
Eles só gabo lhe dão,
Milagres do Brasil são.

Que há de pregar o cachorro,
Sendo uma vil criatura,
Que não sabe de escritura
Mais que aquela o pôs forro?
Quem lhe dá ajuda e socorro
São quatro sermões antigos;
E se amigos tem um cão,
Milagres do Brasil são.

Um cão é o timbre maior
Da Ordem predicatória,
Mas não acho em toda a história
Que um cão fosse pregador,
Se nunca falta um senhor:
Que lhe alcance esta licença
De Lourenço por Lourença,
Que as pardas tudo farão,
Milagres do Brasil são.

Té em versos quer dar penada,
E por que o gênio desbroche,
Como é cão, a troche-moche
Mete a unha e dá dentada:
O Perro não sabe nada,
E se com pouca vergonha
Tudo abate, é porque sonha
Que sabe alguma questão,
Milagres do Brasil são.

Do Perro afirmam doutores
Que fez uma apologia
Ao Mestre da teologia,
Se da lua aos resplendores
Outra ao sol dos pregadores:
Late um cão a noite inteira,
E ela, seguindo a carreira,
Luz com mais ostentação,
Milagres do Brasil são.

Que vos direi do Mulato,
Que vos não tenha já dito,
Se será amanhã delito
Falar dele sem recato?
Não faltará um mentecapto,
Que como vilão de encerro
Sinta que dêem no seu perro,
E se porta como um cão:
Milagres do Brasil são.

Imaginais que o insensato
De canzarrão fala tanto
Porque sabe tanto ou quanto?
Não, se não porque é mulato;
Ter sangue de carrapato,
Seu estorraque de congo,
Cheirar-lhe a roupa amondongo,
É cifra da perfeição:
Milagres do Brasil são.
🌹
🌹
Retrato / Dona Ângela
Anjo no nome, Angélica na cara
Isso é ser flor, e Anjo juntamente
Ser Angélica flor, e Anjo florente
Em quem, se não em vós se uniformara?

Quem veria uma flor, que a não cortara
De verde pé, de rama florescente?
E quem um Anjo vira tão luzente
Que por seu Deus, o não idolatrara?

Se como Anjo sois dos meus altares
Fôreis o meu custódio, e minha guarda
Livrara eu de diabólicos azares

Mas vejo, que tão bela, e tão galharda
Posto que os Anjos nunca dão pesares
Sois Anjo, que me tenta, e não me guarda.
🌹
E pois coronista sou
E pois coronista sou.

Se souberas falar também falaras
também satirizaras, se souberas,
e se foras poeta, poetaras.

Cansado de vos pregar
cultíssimas profecias,
quero das culteranias
hoje o hábito enforcar:
de que serve arrebentar,
por quem de mim não tem mágoa?
Verdades direi como água,
porque todos entendais
os ladinos, e os boçais
a Musa praguejadora.
Entendeis-me agora?

Permiti, minha formosa,
que esta prosa envolta em verso
de um Poeta tão perverso
se consagre a vosso pé,
pois rendido à vossa fé
sou lá Poeta converso
Mas amo por amar, que é liberdade.
🌹
Ao padre Lourenço Ribeiro, 
Homem pardo que foi vigário da freguesia do Passé
Um branco muito encolhido,
Um mulato muito ousado,
Um branco todo coitado,
Um canaz todo atrevido;
O saber muito abatido,
A ignorância e ignorante
Muito ufana e mui farfante,
Sem pena ou contradição:
Milagres do Brasil são.

Quem um cão revestido em padre,
Por culpa da Santa Sé,
Seja tão ousado que
Contra um branco honrado ladre;
E que esta ousadia quadre
Ao bispo, ao governador,
Ao cortesão, ao senhor,
Tendo naus no maranhão:
Milagres do Brasil são.

Se este tal podengo asneiro
O pai o esvanece já,
A mãe lhe lembro que está
Roendo em um tamoeiro:
Que importa um branco cueiro,
Se o... É tão denegrido!
Mas se nomisto sentido
Se lhe esconde a negridão,
Milagres do Brasil são.

Prega o perro frandulário,
E como a licença o cega,
Cuida que em púlpito prega,
E ladra num campanário:
Vão ouvi-lo de ordinário
Tios e tias do Congo,
E se, suando o mondongo,
Eles só gabo lhe dão,
Milagres do Brasil são.

Que há de pregar o cachorro,
Sendo uma vil criatura,
Que não sabe de escritura
Mais que aquela o pôs forro?
Quem lhe dá ajuda e socorro
São quatro sermões antigos;
E se amigos tem um cão,
Milagres do Brasil são.

Um cão é o timbre maior
Da Ordem predicatória,
Mas não acho em toda a história
Que um cão fosse pregador,
Se nunca falta um senhor:
Que lhe alcance esta licença
De Lourenço por Lourença,
Que as pardas tudo farão,
Milagres do Brasil são.

Té em versos quer dar penada,
E por que o gênio desbroche,
Como é cão, a troche-moche
Mete a unha e dá dentada:
O Perro não sabe nada,
E se com pouca vergonha
Tudo abate, é porque sonha
Que sabe alguma questão,
Milagres do Brasil são.

Do Perro afirmam doutores
Que fez uma apologia
Ao Mestre da teologia,
Se da lua aos resplendores
Outra ao sol dos pregadores:
Late um cão a noite inteira,
E ela, seguindo a carreira,
Luz com mais ostentação,
Milagres do Brasil são.

Que vos direi do Mulato,
Que vos não tenha já dito,
Se será amanhã delito
Falar dele sem recato?
Não faltará um mentecapto,
Que como vilão de encerro
Sinta que dêem no seu perro,
E se porta como um cão:
Milagres do Brasil são.

Imaginais que o insensato
De canzarrão fala tanto
Porque sabe tanto ou quanto?
Não, se não porque é mulato;
Ter sangue de carrapato,
Seu estorraque de congo,
Cheirar-lhe a roupa amondongo,
É cifra da perfeição:
Milagres do Brasil são.
🌹
Define a sua cidade
De dois ff se compõe
esta cidade a meu ver:
um furtar, outro foder.

Recopilou-se o direito,
e quem o recopilou
com dous ff o explicou
por estar feito, e bem feito:
por bem digesto, e colheito
só com dous ff o expõe,
e assim quem os olhos põe
no trato, que aqui se encerra,
há de dizer que esta terra
de dous ff se compõe.

Se de dous ff composta
está a nossa Bahia,
errada a ortografia,
a grande dano está posta:
eu quero fazer aposta
e quero um tostão perder,
que isso a há de perverter,
se o furtar e o foder bem
não são os ff que tem
esta cidade ao meu ver.

Provo a conjetura já,
prontamente como um brinco:
Bahia tem letras cinco
que são B-A-H-I-A:
logo ninguém me dirá
que dous ff chega a ter,
pois nenhum contém sequer,
salvo se em boa verdade
são os ff da cidade
um furtar, outro foder.
🌹
Descreve a vida escolástica
Mancebo sem dinheiro, bom barrete,
Medíocre o vestido, bom sapato,
Meias velhas, calção de esfola-gato,
Cabelo penteado, bom topete;

Presumir de dançar, cantar falsete,
Jogo de fidalguia, bom barato,
Tirar falsídia ao moço do seu trato,
Furtar a carne à ama, que promete;

A putinha aldeã achada em feira,
Eterno murmurar de alheias famas,
Soneto infame, sátira elegante;

Cartinhas de trocado para a freira,
Comer boi, ser Quixote com as damas,
Pouco estudo: isto é ser estudante.
🌹
Aos vícios
Eu sou aquele que os passados anos
Cantei na minha lira maldizente
Torpezas do Brasil, vícios e enganos.

E bem que os descantei bastantemente,
Canto segunda vez na mesma lira
O mesmo assunto em plectro diferente.

Já sinto que me inflama e que me inspira
Talia, que anjo é da minha guarda
Dês que Apolo mandou que me assistira.

Arda Baiona e todo o mundo arda
Que a quem de profissão falta à verdade
Nunca a dominga das verdades tarda.

Nenhum tempo excetua a cristandade
Ao pobre pegureiro do Parnaso
Para falar em sua liberdade.

A narração há de igualar ao caso
E se talvez acaso o não iguala
Não tenho por poeta o que é Pegaso.

De que pode servir calar quem cala?
Nunca se há de falar o que se sente
Sempre se há de sentir o que se fa1a.

Qual homem pode haver tão paciente,
Que, vendo o triste estado da Bahia
Não chore, não suspire e não lamente?

Isto faz a discreta fantasia:
Discorre em um e outro desconcerto
Condena o roubo, increpa a hipocrisia.

O néscio, o ignorante, o inexperto
Que não elege o bom, nem mau reprova
Por tudo passa deslumbrado e incerto.

E quando vê talvez na doce trova
Louvado o bem e o mal vituperado
A tudo faz focinho, e nada aprova.

Diz logo prudentaço e repousado:
-Fulano é um satírico, é um louco,
De língua má, de coração danado.

Néscio, se disso entendes nada ou pouco,
Como mofas com riso e algazaras
Musas, que estimo ter, quando as invoco.

Se souberas falar, também falaras
Também satirizaras, se souberas
E se foras poeta, poetizaras.

A ignorancia dos homens destas eras
Sisudos faz ser uns, outros prudentes,
Que a mudez canoniza bestas feras.

Há bons, por não poder ser insolentes,
Outros há comedidos de medrosos,
Não mordem outros não? -por não ter dentes.

Quantos há que os telhados têm vidrosos,
E deixam de atirar sua pedrada,
De sua mesma telha receosos?

Uma só natureza nos foi dada
Não criou Deus os naturais diversos;
Um só Adão criou e esse de nada.

Todos somos ruins, todos perversos,
Só nos distingue o vício e a virtude,
De que uns são comensais, outros adversos

Quem maior a tiver do que eu ter pude,
Esse só me censure, esse me note,
Calem-se os mais chitom, e haja saúde.
🌹
Solitário em seu mesmo quarto à vista da luz
Ó tu do meu amor fiel traslado
Mariposa entre as chamas consumida,
Pois se à força do ardor perdes a vida,
A violência do fogo me há prostrado.

Tu de amante o teu fim hás encontrado,
Essa flama girando apetecida;
Eu girando uma penha endurecida,
No fogo, que exalou, morro abrasado.

Ambos de firme anelando chamas,
Tu a vida deixas, eu a morte imploro
Nas constâncias iguais, iguais nas chamas.

Mas ai! que a diferença entre nós choro,
Pois acabando tu ao fogo, que amas,
Eu morro, sem chegar à luz, que adoro
🌹
 Aos afetos e lágrimas derramadas
Ardor em firme coração nascido;
Pranto por belos olhos derramado;
Incêndio em mares de água disfarçado;
Rio de neve em fogo convertido:

Tu, que um peito abrasas escondido;
Tu, que em um rosto corres desatado;
Quando fogo, em cristais aprisionado;
Quando cristal, em chamas derretido.

Se és fogo, como passas brandamente,
Se és neve, como queimas com porfia?
Mas ai, que andou Amor em ti prudente!

Pois para temperar a tirania,
Como quis que aqui fosse a neve ardente,
Permitiu parecesse a chama fria.
🌹
Admirável expressão que faz o poeta de seu atencioso silêncio
Largo em sentir, em respirar sucinto
Peno, e calo tão fino, e tão atento,
Que fazendo disfarce do tormento
Mostro, que o não padeço, e sei, que o sinto.

O mal, que fora encubro, ou que desminto,
Dentro no coração é, que sustento,
Com que para penar é sentimento,
Para não se entender é labirinto.

Ninguém sufoca a voz nos seus retiros;
Da tempestade é o estrondo efeito:
Lá tem ecos a terra, o mar suspiros.

Mas oh do meu segredo alto conceito!
Pois não me chegam a vir à boca os tiros
Dos combates, que vão dentro no peito.
🌹
Definição do amor – romance
Mandai-me, Senhores, hoje,
que em breves rasgos descreva
do Amor a ilustre prosápia,
e de Cupido as proezas.

Dizem que da clara escuma,
dizem que do mar nascera,
que pegam debaixo d’água
as armas, que Amor carrega.

Outros, que fora ferreiro
seu pai, onde Vênus bela
serviu de bigorna, em que
malhava com grã destreza.

Que a dois assopros lhe fez
o fole inchar de maneira,
que nele o fogo acendia,
nela aguava a ferramenta.

Nada disto é, nem se ignora,
que o Amor é fogo, e bem era
tivesse por berço as chamas
se é raio nas aparências.

Este se chama Monarca,
ou Semideus se nomeia,
cujo céu são esperanças,
cujo inferno são ausências.

Um Rei, que mares domina,
Um Rei, o mundo sopeia,
sem mais tesouro que um arco,
sem mais arma que uma seta.

O arco talvez de pipa,
a seta talvez de esteira,
despido como um maroto,
cego como uma toupeira.

Um maltrapilho, um ninguém,
que anda hoje nestas eras
com o cu à mostra, jogando
com todos a cabra-cega.

Tapando os olhos da cara,
por deixar o outro alerta,
por detrás à italiana,
por diante à portuguesa.

Diz que é cego, porque canta,
ou porque vende gazetas
das vitórias, que alcançou
na conquista das finezas.

Que vende também folhinhas
cremos por coisa mui certa,
pois nos dá os dias santos,
sem dar ao cuidado tréguas;

E porque despido o pintam
é tudo mentira certa,
mas eu tomara ter junto
o que Amor a mim me leva.

Que tem asas com que voa
e num pensamento chega
assistir hoje em Cascais
logo em Coina, e Salvaterra.

Isto faz um arrieiro
com duas porradas tesas:
e é bem, que no Amor se gabe,
o que o vinho só fizera!

E isto é Amor? é um corno.
Isto é Cupido? má peça.
Aconselho que o não comprem
ainda que lhe achem venda.

Isto, que o Amor se chama,
este, que vidas enterra,
este, que alvedrios prostra,
este, que em palácios entra:

Este, que o juízo tira,
este, que roubou a Helena,
este, que queimou a Tróia,
e a Grã-Bretanha perdera:

Este, que a Sansão fez fraco,
este, que o ouro despreza,
faz liberal o avarento,
é assunto dos poetas:

Faz o sisudo andar louco,
faz pazes, ateia a guerra,
o frade andar desterrado,
endoidece a triste freira.

Largar a almofada a moça,
ir mil vezes à janela,
abrir portas de cem chaves,
e mais que gata janeira.

Subir muros e telhados,
trepar cheminés e gretas,
chorar lágrimas de punhos,
gastar em escritos resmas.

Gastar cordas em descantes,
perder a vida em pendências,
este, que não faz parar
oficial algum na tenda.

O moço com sua moça,
o negro com sua negra,
este, de quem finalmente
dizem que é glória, e que é pena.

É glória, que martiriza,
uma pena, que receia,
é um fel com mil doçuras,
favo com mil asperezas.

Um antídoto, que mata,
doce veneno, que enleia,
uma discrição, sem siso,
uma loucura discreta.

Uma prisão toda livre,
uma liberdade presa,
desvelo com mil descansos,
descanso com mil desvelos.

Uma esperança, sem posse,
uma posse, que não chega,
desejo, que não se acaba,
ânsia, que sempre começa.

Uma hidropisia d’alma,
da razão uma cegueira,
uma febre da vontade,
uma gostosa doença.

Uma ferida sem cura,
uma chaga, que deleita,
um frenesi dos sentidos,
desacordo das potências.

Um fogo incendido em mina,
faísca emboscada em pedra,
um mal, que não tem remédio,
um bem, que se não enxerga.

Um gosto, que se não conta,
um perigo, que não deixa,
um estrago, que se busca,
ruína, que lisonjeia.

Uma dor, que se não cala,
pena, que sempre atormenta,
manjar, que não enfastia,
um brinco, que sempre enleva.

Um arrojo, que enfeitiça,
um engano, que contenta,
um raio, que rompe a nuvem,
que reconcentra a esfera.

Víbora, que a vida tira
àquelas entranhas mesmas,
que segurou o veneno,
e que o mesmo ser lhe dera.

Um áspide entre boninas,
entre bosques uma fera,
entre chamas salamandra,
pois das chamas se alimenta.

Um basalisco, que mata,
lince, que tudo penetra,
feiticeiro, que adivinha,
marau, que tudo suspeita.

Enfim o Amor é um momo,
uma invenção, uma teima,
um melindre, uma carranca,
uma raiva, uma fineza.

Uma meiguice, um afago,
um arrufo, e uma guerra,
hoje volta, amanhã torna,
hoje solda, amanhã quebra.

Uma vara de esquivanças,
de ciúmes vara e meia,
um sim, que quer dizer não,
não, que por sim se interpreta.

Um queixar de mentirinha,
um folgar muito deveras,
um embasbacar na vista,
um ai, quando a mão se aperta.

Um falar por entre dentes,
dormir a olhos alerta,
que estes dizem mais dormindo,
do que a língua diz discreta.

Uns temores de mal pago,
uns receios de uma ofensa,
um dizer choro contigo,
choramingar nas ausências.

Mandar brinco de sangrias,
passar cabelos por prenda,
das palmitos pelos Ramos,
e dar folar pela festa.

Anal pelo São João,
alcachofras na fogueira,
ele pedir-lhe ciúmes,
ela sapatos e meias.

Leques, fitas e manguitos,
rendas da moda francesa,
sapatos de marroquim,
guarda-pé de primavera.

Livre Deus, a quem encontra,
ou lhe suceder ter freira;
pede-vos por um recado
sermão, cera e caramelas.

Arre lá com tal amor!
isto é amor? é quimera,
que faz de um homem prudente
converter-se logo em besta.

Uma bofia, uma mentira
chamar-lhe-ei, mais depressa,
fogo selvagem nas bolsas,
e uma sarna das moedas.

Uma traça do descanso,
do coração bertoeja,
sarampo da liberdade,
carruncho, rabuge e lepra.

É este, o que chupa, e tira,
vida, saúde e fazenda,
e se hemos falar verdade
é hoje o Amor desta era.

Tudo uma bebedice,
ou tudo uma borracheira,
que se acaba co’o dormir,
e co’o dormir começa.

O Amor é finalmente
um embaraço de pernas,
uma união de barrigas,
um breve tremor de artérias.

Uma confusão de bocas,
uma batalha de veias,
um reboliço de ancas,
quem diz outra coisa, é besta.
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