25 de outubro de 2020

Padaria Lopes - Contos

O dia na padaria mais tradicional da cidade começa como todos os outros, pessoas apressadas que mal se sentam para comer e já vão saindo, mas, satisfeitas com o café da manhã. Com um balcão imenso, com todos os tipos de pães bolos e doces possíveis. 

O movimento se mantém durante todo o dia, todos os produtos expostos nos balcões são vendidos, então durante a noite é preciso fazer mais, é aí que o padeiro aparece.

Movendo-se com maestria, o padeiro muito querido pelos clientes, faz com prazer o seu trabalho e tão logo o relógio vira a meia-noite, ele se encaminha, animado, para a cozinha, depois de entrar e fechar a porta, o padeiro toma a forma no qual consegue fazer os melhores pães, forma que ninguém desconfia, a versão mais grotesca e macabra, ele se apronta para a melhor tarefa, consagrar os alimentos feitos naquele lugar para o seu Senhor, sempre fiel, o padeiro oferece todas as coisas feitas na padaria para o diabo.

Para o trabalho as roupas já não mais necessárias, são usadas apenas para o deleite dos clientes, também não cabem mais no corpo agora transfigurado, já que suas pernas, braços e pescoço se alongam ao ponto de parecer não ter mais ossos, assim fica mais fácil de se movimentar pela cozinha e usar os ingredientes, estes são encontrados em um lugar muito diferente, já que os consegue tirar de seu próprio corpo, um presente dado pelo demônio, para que suas matérias-primas nunca se esgotem.

O padeiro usa a sua própria pele, é muito saborosa e vai ajudar a compor a massa, de suas mãos saem garras imensas, com elas, arranca a camada adiposa, a coloca na batedeira, junto com ela, são precisos água e sal, sem problemas para o padeiro, que de sua boca, agora monstruosa, tira os dentes gigantes e afiados, um por um são moídos e transformados em pó, com a língua gordurosa e comprida, mastiga a boca desdentada para produzir uma saliva que não tem fim, ela é a água que vai moldar o pão. 
Para findar o preparo, falta apenas o fermento, o padeiro tem o cabelo tão longo que se espalha pela cozinha, ele os puxa pela raiz e os engole, com o ácido de seu estômago, transforma o cabelo em uma pasta, depois vomita aquele que é o melhor fermento usado na cidade, nenhum outro faz o pão crescer tanto. Enquanto as massas descansam, o corpo despedaçado do padeiro se regenera, afinal ele trabalha a noite inteira e sempre vai precisar de mais.
Para assar os pães, o melhor forno, de uma fenda no chão, sai um ar escaldante, vindo direto do poço infernal, para conseguir fogo, o padeiro corta as próprias pernas, as fazendo de lenha, joga embaixo do forno conseguindo labaredas para a noite toda. 
Mesmo sem os membros inferiores, o padeiro não fica lento, ele usa os longos braços para se locomover, pega os pães já descansados e os coloca para assar, a noite vai passando e o padeiro continua a trabalhar, usa suas garras para abrir sua barriga e retira seus órgãos, vai até o fogão e os coloca na panela para cozinhar, vão se desfazendo, se transformando em geleia para rechear os melhores sonhos açucarados.

O dia vem raiando, para terminar o árduo trabalho, falta apenas o café, para a tarefa o padeiro precisa apenas de uma faca, com um corte limpo e preciso, decepa a própria cabeça, que voa pela cozinha, pousando estratégicamente sobre bancada de serviço, de lá ele coordena a queda de seu corpo sobre o fogão, a explosão de seu sangue, vindo de todos os seus vasos sanguíneos, veias, capilares e artérias extiguem todo o sangue de uma vez, derramando o líquido dentro do bule fulmegante, fazendo o sangue ferver instantaneamente, exalando não o odor ferroso e saguinolento que causa repulsa, mas um aroma adocicado, característico dos melhores grãos, que acaba invadindo toda a padaria e chamando os clientes para iniciarem mais um dia, indo tomar do mais delicioso café e do melhor pão já feito.

Padaria Lopes
Evelyn Veiga

21 de outubro de 2020

As Mulheres que Viravam Patas - Contos

Eu odiava quando minha avó me obrigava a ir buscar restos no matadouro, além de ser longe de casa, ter que andar a pé debaixo de um sol escaldante ou dependendo da época do ano poderia chover muito e eu ter que caminhar por estradas enlameadas, ainda tinha aqueles malditos restos, eles ficavam numa caçamba, tinha que prestar bastante atenção pra não pegar os pedaços estragados, no mais, conseguia pegar ossos com um pouco de carne de costela e carne de pescoço. Eu voltava com o balde pesado e sujo, fazia vômito até chegar em casa, ficava enjoada a semana toda, só de lembrar, perdia completamente a fome.

Às vezes, por ficar limpando a casa, eu acabava indo mais tarde, aproveitava para fugir do sol ou da chuva, mas como era muito longe, acabava chegando no matadouro quase no fim da tarde, tendo que voltar no começo da noite, o que poderia ser perigoso. Quando isso acontecia, eu apertava o passo e ia por uma estrada que dava nos fundos do matadouro, que deixava a viagem um pouco mais curta, quando chegava por aquele lado, eu via o que tinha de pior, carcaças podres, sangue, couro cheio de bicho, larvas, moscas varejeiras, no chão escorria um caldo extremamente repugnante, no qual boiava tudo aquilo, atraindo urubus imensos, mas como não tinha jeito, eu ia assim mesmo.

Minha avó sempre dizia para não pegar essa estrada perto do morro, pois era um caminho ermo, poderia ter alguém à espreita e era na mata onde moravam os seres sobrenaturais, os espíritos por assim dizer, pois estávamos no fim do mês de outubro, dia das bruxas, adentrando o dia de todos os santos e o dia de finados, dias nos quais “as almas saiam de dentro da terra e o diabo as mandava vagar pela floresta atrás de almas indefesas”, dizia ela para me assustar, eu acho.

O que mais tem em Valador são casos bizarros, os homens contavam histórias malucas enquanto bebiam no bar e as beatas conversavam na calçada depois da missa, todos  adoravam comentar que viram a mula sem cabeça, o lobisomem, falavam sobre “o menino do pescoço virado”, “as meninas penduradas pelos pés” e as bruxas mais famosas da cidade, “as mulheres que viravam patas”.

Eu ouvia minha avó falar sobre elas, mas eu nunca tinha visto, na verdade, acho que ninguém nunca viu, eu não sabia realmente o que era uma bruxa, mas a maioria dizia que eram mulheres que faziam feitiços e pediam coisas para o diabo em troca das almas delas ou das almas de outras pessoas.

Pela crendice, as mulheres foram amaldiçoadas por praticarem magia e que no dia das bruxas se transformavam em patas, saiam voando pela cidade e conseguiam ouvir todas as conversas e segredos, por isso as vezes, alguém se atrevia a procurar por elas no morro pra ver se elas sabiam de alguma coisa de alguém importante, elas também faziam feitiços para aqueles que desejavam obter amor ou morte de alguém, dizem que era assim que elas conseguiam viver.

Um dia, me atrasei para ir buscar os restos, minha avó disse para ir correndo porque aquele era um dia muito ruim para se estar na rua, que as almas castigadas sairiam pela noite e que de vez em quando elas levavam alguma pessoa viva para o inferno por engano. Ao ouvir aquilo, me apressei em chegar no matadouro, catar o que encontrasse, sair bem rápido de lá e voltar para casa. Já ficando escuro, peguei o balde que dessa vez não estava tão pesado porque as pessoas já tinham chegado na minha frente, então para cortar caminho, peguei a estrada dos fundos, que ficava paralela ao rio e que chegava ao pé do morro.

Tinha chovido no dia anterior, naquele trecho havia muita lama, não tinha luz de nenhum poste por perto, mas o céu estava brilhando, de tão limpo, as estrelas e a lua que empurravam o sol iluminavam o caminho, também conseguia me orientar ao avistar algumas casas, com os pequenos fogareiros se ascendendo, um pouco mais a frente tinha uma casa maior com cinco janelas, cada uma com candeeiro, ao lado, no quintal, uma grande fogueira e em volta dela estavam cinco mulheres.

Naquele momento eu parei, fiquei com uma sensação estranha, como se algo me chamasse e em vez de ir embora pela estrada, peguei uma trilha que ia direto aquela casa, caminhei um pouco, machuquei minhas pernas nos galhos caídos mas cheguei bem perto, dei de cara com uma cerca cheia de espinhos gigantes, mas com algumas frestas e foram por elas que eu assisti  algo que jamais poderei descrever totalmente.

Reunidas em volta da fogueira, as mulheres estavam sem nenhuma roupa, falando algo que parecia ser uma reza, uma cantiga ou como minha avó costumava dizer, um feitiço, como se estivessem invocando alguma coisa, eu pensei que poderiam estar pedindo coisas boas, mas foi apenas um pensamento passageiro, pela cena, pediam algo que não pertencia a este mundo. De mãos dadas, as mulheres começaram a girar em volta do fogo e em uma espécie de transe, diziam:

“Que venha claro como o dia
O segredo na noite revelado
Nós voamos por cima
Arvoredo vai por baixo”

Depois de repetirem o verso inúmeras vezes, uma torrente de ar balançou as árvores, as mulheres quebraram o círculo, soltaram um grito conjunto que arrepiou todo o meu corpo, espantando até os pássaros das árvores, de repente, todas elas começaram a flutuar lentamente, indo em direção a lua, seus corpos iam ficando contorcidos, deformados, o tronco a diminuir, as costelas pareciam ter sido quebradas e compactadas ao tronco, junto as entranhas, dava para ouvir o barulho de ossos estalando, os joelhos viraram para trás, juntando-se as coxas, o pescoço se alongava, repuxando a cabeça e empurrando o peito para frente, a pele ia se encrespando e dos poros saiam penas pretas, enquanto que no rosto, a boca e o nariz se uniam, tomavam forma de um bico rijo e cinza, os olhos tomavam aspecto preto e amarelado, os cabelos caíram e no topo da cabeça ficaram penas avermelhadas.

Por fim, os braços já sem as mãos mostravam as longas asas cobertas de penas, restara somente da forma humana parte da voz, que misturadas aos grasnados de um pato, voltaram conjurar o feitiço. Assim as mulheres transmutadas em patas, bateram as asas e levantaram voo por sobre as árvores.

Depois de assistir todo esse ritual, não tinha outra coisa a fazer a não ser sair correndo, nem vi para onde estava indo, tropecei e deixei cair o balde com os pedaços de osso que saíram rolando pela trilha, catei os que estavam a mão, cheios de terra e folhas, coloquei de volta no balde, pulei o barranco e consegui chegar de volta na estrada de terra, subi a ladeira em dois segundos e dobrei a esquina em direção à Avenida.

Nunca corri tanto, eu olhava para céu já totalmente escuro para ver se alguma pata estava atrás de mim, sem fôlego passei pela praça e finalmente dobrei na rua cinquenta, a minha casa era a última. Ao ver os vizinhos conhecidos, parei de correr, ofegante, pensando que minha avó ia me esfolar, além de já ser muito tarde, estava toda arranhada, lasquei o balde, perdi metade dos pedaços de carne lá na mata e os que sobraram estavam só a lama. 

Eu estava perdida, ai de mim se dissesse que a razão por ter chegado naquele estado fosse por ter parado em algum lugar, ainda mais chegar dizendo que vi bruxas dançando e invocando o diabo, que a história era verdadeira, nem pensar, era melhor falar que algum cachorro correu atrás de mim, me atacou e eu rolei com ele, balde e tudo pelo mato, era melhor inventar isso do que dizer que eu tinha acabado de ver as mulheres que viravam patas.

Quando cheguei em casa, entrei pela cozinha, larguei o balde imundo, enchi um copo d’água direto da moringa e enquanto tomava tudo em um gole só, eu tremia, minha mente voltava para aquela cena, então, minha avó chegou, parada na porta olhava para mim e eu ao olhar de volta para ela, notei em seu semblante, algo que fez ficar paralisada, porque ao invés de estar com raiva, ela estava rindo, levantou a mão e com o braço estendido, apontou para o calendário pregado na parede, era 31 de Outubro.

As Mulheres que viravam Patas
Evelyn Veiga

10 de outubro de 2020

Os Cães de Valador - Contos

Ao tentar cortar caminho para fugir de uma tempestade e chegar logo em sua casa, uma mulher passou por engano por um atalho que levava a cidade de Valador, um lugar afastado, cercado por um grande rio, com habitantes de expressão carrancuda e pouco hospitaleiros, poucos eram os que viajam até lá, pois se ouviam inúmeras histórias bizarras e casos inexplicáveis de pessoas que iam e não regressavam, a própria mulher tinha receio de sequer cruzar em frente a ponte que levava até a cidade.
De repente no meio da estrada, surgiu uma caixa, como se tivesse sido colocada lá de propósito, o objeto inesperado fez a mulher frear bruscamente, ao descer do carro para ver o que tinha na caixa, encontrou três pequenos cachorros abandonados e pensara que provavelmente algum morador perverso de Valador,  tivera realizado tamanha maldade e decidiu levá-los para casa com ela.
Os cães eram alegres e barulhentos, latiam para tudo e todos, tinham os pelos completamente pretos, eram do mesmo tamanho, pareciam ser um único cachorro de tão iguais. Logo se adaptaram a casa e conquistaram a nova dona, e passaram a dormir na cama com ela. Mas, não demorou muito tempo, depois de chegar dessa viagem, para que a mulher começasse a se sentir mal.
A mulher passou a manifestar uma doença desconhecida, com sintomas terríveis e paralisantes, nenhum médico que consultara, conseguiu um diagnóstico e em pouco tempo, a doença idiopática, corroera o físico, a disposição e a lucidez, sua mente divagava, seu corpo ficara cada vez mais estático, submerso em brumas, enquanto dormia, entrava em um estado de torpor e saía de sua boca, gritos com notas mórbidas e discrepantes de agonia.
Ao vagar pela casa, a mulher foi adquirindo um estado de semiconsciência, era como um som distante, uma sombra que se esgueirava pelas paredes, não tinha como fazer qualquer atividade, restaram para lhe fazer companhia, seus três pequenos cães. 
Com o passar dos dias, a mulher não conseguia mais caminhar como antes, e ficava a maior parte do tempo na cama. Ela percebera que estranhos eventos começaram a ocorrer, os cães antes bagunceiros, adotaram uma postura diferente, sisudos, farejavam o ar e olhavam paras as quinas, como se alguém ali estivesse, não se alimentavam e ao invés de dormirem com a dona, faziam uma estranha vigília, não subiam mais na cama, ficavam no chão, um ao lado esquerdo, outro ao lado direito e o terceiro aos pés do leito, esperavam a mulher adormecer e ficavam atentos a aqueles ruídos que saíam de dentro do corpo que estava tomando um aspecto disforme.
Por fim a mulher não levantara mais, apenas gemia, gritava e se contorcia, de sua respiração saía um odor purulento, de seus poros, suor cinza, de sua boca, saliva negra e quente. Os cães continuavam a vigília junto a cama e observavam a mulher que tossia, arrotava e cuspia uma lama pestilenta, cujas nódoas se espalhavam pelos lençóis.
Os cães então se levantaram e começaram a uivar incessantemente, olhavam para as quinas e para o teto, lá estava uma sombra que não possuía forma humana, mas sim de um cão, pingava de seu focinho, escorria pelos dentes e língua uma quantidade infinita de larvas raquíticas, que caíam em cima do corpo da mulher. Foi nesse momento que se ouviu um som que transcende a voz humana e que somente os cães puderam decifrar, a sombra dizia de maneira ininterrupta: “Comam!"
E assim os cães o fizeram, em um único salto, chegaram ao alto da cama onde jazia a mulher, ao sentir a presença de seus tão amados cachorros, abrira os olhos, mas não conseguia se mexer, ao tentar falar saía apenas bolhas de chorume e seu rosto e corpo coberto pelas larvas, queimava e a pele se transformava em feridas.
A matilha começara a se alimentar, os cães sob as ordens da sombra monstruosa, destroçaram pernas e braços, fuçando a barriga, rasgando a pele e estourando as vísceras, um banquete com uma melodia infernal, de cheiro indescritível e visão aterradora, os cães não pararam de comer as larvas, as entranhas e os ossos da mulher e mesmo sem traqueia, cordas vocais, laringe e pulmões, ainda gritava e rosnava sons de outro mundo.
Ao amanhecer, depois de uma noite de pesadelo, tamanho foram os barulhos medonhos e desconhecidos que ouviram, os vizinhos chegaram à casa da mulher e lá viram e que nenhuma palavra seria capaz de transmitir aquela cena, pois não fazia parte de uma coisa humana, com odor repugnante, a casa estava tomada pelas larvas, não eram mais raquíticas, mas grandes, gordas, que exalavam a morte e expeliam a peste por todos os lados. Nem a mulher, nem os cães foram encontrados.
OS CÃES DE VALADOR
Evelyn Veiga

6 de outubro de 2020

O Gigante Egoísta - Oscar Wilde

Toda tarde, quando vinham da escola, as crianças costumavam brincar no jardim do Gigante.Era um jardim grande e gracioso, com grama verde e macia. Aqui e ali, sobre a grama, destacavam-se flores lindas como estrelas, e havia doze pessegueiros que, na primavera, desabrochavam em delicadas flores em tons de rosa e pérola, e no outono davam frutos deliciosos. Os pássaros pousavam nas árvores e cantavam com tanta doçura que as crianças costumavam parar as brincadeiras para ouvi-los.
— Como somos felizes aqui! — gritavam umas para as outras.
Um dia, o Gigante voltou. Ele fora visitar um amigo, o ogro da Cornualha, e ficara com ele por sete anos. Terminados os sete anos, ele havia dito tudo o que tinha a dizer, pois seu assunto era limitado, e decidiu voltar ao próprio castelo. Quando chegou, viu as crianças brincando no jardim.
— O que estão fazendo aqui? — gritou com uma voz muito áspera, e as crianças fugiram.
— Meu jardim é meu jardim — disse o Gigante. — Qualquer um consegue entender isso, e não vou deixar que ninguém além de mim brinque nele.
Então, ele construiu um muro alto ao redor do jardim e colocou uma placa de advertência.
Invasores serão castigados
Era um Gigante muito egoísta.
As pobres crianças não tinham mais onde brincar. Tentaram brincar na estrada, mas era muito poeirenta e cheia de pedras duras, e elas não gostaram. Costumavam passear em torno do muro alto quando as aulas terminavam, conversando sobre o belo jardim lá dentro.
— Como éramos felizes lá — diziam umas às outras.
Então chegou a Primavera, e em todo o país havia florzinhas e passarinhos. Somente no jardim do Gigante Egoísta ainda era Inverno. Os pássaros não queriam cantar lá porque não havia crianças, e as árvores se esqueceram de florescer. Um dia, uma linda flor ergueu a cabeça da grama, mas, quando viu a placa de advertência, teve tanta pena das crianças que se recolheu de volta à terra e foi dormir. As únicas pessoas que ficaram satisfeitas foram a Neve e a Geada.
— A Primavera esqueceu este jardim — gritaram elas —, então vamos morar aqui o ano todo.
A Neve cobriu a grama com seu grande manto branco e a Geada pintou todas as árvores de prata. Depois, convidaram o Vento Norte para ficar com elas, e ele veio. Estava envolto em peles, rugiu o dia inteiro pelo jardim e derrubou os chapéus das chaminés.
— Que lugar encantador — disse ele —, precisamos convidar o Granizo para nos visitar.
Então o Granizo veio. Todos os dias, por três horas, ele sacudia o telhado do castelo até quebrar a maior parte das telhas de ardósia, depois corria por todo o jardim o mais rápido que conseguia. Vestia cinza e seu hálito era como gelo.
— Não consigo entender por que a Primavera está tão atrasada — disse o Gigante Egoísta, sentado à janela, olhando para o jardim branco e frio. — Tomara que o tempo mude.
Mas a Primavera nunca veio, nem o Verão. O Outono deu frutos dourados a todos os jardins, mas, ao jardim do Gigante, não deu nenhum.
— Ele é muito egoísta — disse o Outono.
Por isso, era sempre Inverno lá, e o Vento Norte, o Granizo, a Geada e a Neve dançavam entre as árvores.
Uma manhã, o Gigante estava deitado acordado na cama quando ouviu uma linda música. Soou tão doce aos seus ouvidos que ele pensou que deviam ser os músicos do Rei a passar. Na verdade, era só um pequeno pintarroxo cantando do lado de fora da janela, mas fazia tanto tempo desde que o Gigante ouvira um pássaro cantar em seu jardim que parecia a música mais bonita do mundo. Então o Granizo parou de dançar sobre a cabeça dele, e o Vento Norte deixou de rugir, e um perfume delicioso o alcançou através da janela aberta.
— Creio que a Primavera finalmente chegou — disse o Gigante, pulou da cama e olhou para fora.
O que ele viu?
Teve uma visão magnífica. Através de um pequeno buraco no muro, as crianças haviam entrado e estavam sentadas nos galhos das árvores. Em todas as árvores que ele podia ver havia uma criancinha. E as árvores ficaram tão felizes por ter as crianças de volta que se cobriram de flores e balançaram os braços delicadamente acima da cabeça dos pequeninos. Os pássaros voavam e gorjeavam com prazer, e as flores espiavam por entre a grama verde e riam. Era uma cena adorável, mas num canto ainda era Inverno. Era o canto mais distante do jardim, e nele havia um garotinho. Era tão pequeno que não conseguia alcançar os galhos da árvore e vagava em torno dela, chorando amargamente. A pobre árvore ainda estava muito coberta de Geada e Neve, e o Vento Norte soprava e rugia acima dela.
— Suba, garotinho! — disse a Árvore, e inclinou os galhos o mais baixo que pôde; mas o menino era pequeno demais.
E o coração do Gigante se derreteu enquanto ele olhava para fora.
— Como fui egoísta! — disse ele. — Agora sei por que a Primavera não veio para cá. Vou colocar aquele pobre garotinho no alto da árvore e depois derrubar o muro, e meu jardim será o parquinho das crianças para sempre.
Ele realmente lamentava muito o que havia feito. Assim, desceu a escada, abriu a porta da frente delicadamente e saiu para o jardim. Mas, quando as crianças o viram, tiveram tanto medo que fugiram, e o jardim voltou a ser Inverno. Só o garotinho não correu, pois seus olhos estavam tão tomados de lágrimas que ele não viu o Gigante chegar. E o Gigante aproximou-se por trás dele e o pegou gentilmente na mão, e o colocou no alto da árvore. E nesse instante a árvore abriu todas as suas flores, e os pássaros vieram e cantaram nela, e o garotinho esticou os braços, lançando-os ao redor do pescoço do Gigante, e o beijou. E as outras crianças, quando viram que o Gigante não era mais malvado, voltaram correndo, e com elas veio a Primavera.
— Agora o jardim é seu, pequeninos — disse o Gigante. Pegou um grande machado e derrubou o muro.
E quando as pessoas foram ao mercado, às doze horas, encontraram o Gigante brincando com as crianças no jardim mais bonito que já tinham visto.
Durante todo o dia elas brincaram. À noite, foram se despedir do Gigante.
— Mas onde está seu coleguinha? — perguntou ele. — O garoto que eu coloquei na árvore.
O Gigante amava mais esse menino porque ele o beijara.
— Não sabemos — responderam as crianças. — Ele foi embora.
— Vocês devem dizer a ele para vir aqui amanhã com certeza — disse o Gigante. Mas as crianças disseram que não sabiam onde ele morava e nunca o tinham visto antes; o Gigante ficou muito triste.
Toda tarde, quando as aulas terminavam, as crianças vinham brincar com o Gigante. Mas ninguém nunca mais viu o menino que ele amava. O Gigante era muito gentil com todas as crianças, porém tinha saudades do seu primeiro amiguinho e sempre falava dele.
— Como eu gostaria de vê-lo! — dizia com frequência.
Os anos se passaram e o Gigante ficou muito velho e frágil. Não conseguia mais brincar, por isso, sentava-se numa enorme poltrona, observava as crianças em suas brincadeiras e admirava o jardim.
— Tenho muitas flores bonitas — dizia ele. — Mas as crianças são as flores mais lindas de todas.
Numa manhã de inverno, ele olhou pela janela enquanto se vestia. Agora, não detestava o Inverno, pois sabia que era apenas a Primavera adormecida e que as flores estavam descansando.
De repente, esfregou os olhos, admirado, e olhou e olhou. Com certeza era uma visão maravilhosa. No canto mais distante do jardim, havia uma árvore coberta de lindas flores brancas. Seus galhos eram todos dourados, e frutas prateadas pendiam deles, e embaixo dela estava o menino que ele havia amado.
Para o andar de baixo correu o Gigante com grande alegria e sa­iu para o jardim. Correu pela grama e se aproximou da criança. E, quando chegou bem perto, seu rosto ficou vermelho de raiva e ele disse:
— Quem se atreveu a ferir-te? — Pois na palma das mãos da criança havia a marca de dois pregos, e marcas iguais em seus pezinhos. — Quem se atreveu a ferir-te? — gritou o gigante. — Dize-me, que eu hei de pegar minha grande espada e matá-lo.
— Não! — respondeu a criança. — Mas estas são as feridas do Amor.
— Quem és tu? — perguntou o Gigante, e foi tomado por uma estranha reverência, e se ajoelhou diante da criança.
E a criança sorriu para o Gigante e disse:
— Um dia, você me deixou brincar no seu jardim; hoje, virá comigo ao meu jardim, que é o Paraíso.
E, quando as crianças correram naquela tarde, encontraram o Gigante morto debaixo da árvore, todo coberto de flores brancas.

Audioconto Narrado por Guilherme Briggs

O narrador de O Gigante Egoísta é Guilherme Briggs, ator, dublador, diretor de dublagem, locutor, tradutor, desenhista, youtuber e blogueiro brasileiro. Foi a voz de Buzz Lightyear, de Toy Story, Geralt de Rivia, na série da Netflix The Witcher, Mickey Mouse (desde 2009), Cosmo, de Os Padrinhos Mágicos, Superman em A Liga da Justiça e dezenas de outros personagens amados da cultura pop. O tom grave da voz do Gigante foi criada pelo próprio dublador e o conto foi escolhido para explorar seu icônico timbre. 


Sobre o Autor:
OSCAR WILDE:
Um alto e simpático escritor nascia em 1854, em Dublin. Wilde, que mais tarde ficaria conhecido por suas obras O Retrato de Dorian Gray e O Fantasma de Canterville, era orgulhoso de sua terra natal, a Irlanda. Escreveu o livro The Happy Prince and other Fairy Tales em 1888, de onde O Gigante Egoísta foi traduzido. O conto, tão famoso que ganhou uma animação em 1972, conta sobre um gigante que não queria crianças em seu jardim. Porém, durante um longo inverno, seu coração começa a amolecer, até que uma das crianças realmente toca sua bondosa alma. A história pode ser vista como um encontro gentil entre o paganismo celta e o cristianismo na Irlanda e em terras gaélicas. O cristianismo céltico começou no século V e tinha tradições únicas, diferentes das romanas. Como o próprio autor não se considerava católico até horas antes de sua morte, é possível que este conto seja também uma homenagem à sua mãe, Lady Wilde. De toda forma, a história de redenção e amor do Gigante tornou este conto um clássico de Wilde.