Eu odiava quando minha avรณ me obrigava a ir buscar restos no matadouro, alรฉm
de ser longe de casa, ter que andar a pรฉ debaixo de um sol escaldante ou dependendo
da รฉpoca do ano poderia chover muito e eu ter que caminhar por estradas
enlameadas, ainda tinha aqueles malditos restos, eles ficavam numa caรงamba,
tinha que prestar bastante atenรงรฃo pra nรฃo pegar os pedaรงos estragados, no mais,
conseguia pegar ossos com um pouco de carne de costela e carne de pescoรงo. Eu voltava
com o balde pesado e sujo, fazia vรดmito atรฉ chegar em casa, ficava enjoada a
semana toda, sรณ de lembrar, perdia completamente a fome.
รs vezes, por ficar limpando a casa, eu acabava indo mais tarde,
aproveitava para fugir do sol ou da chuva, mas como era muito longe, acabava
chegando no matadouro quase no fim da tarde, tendo que voltar no comeรงo da
noite, o que poderia ser perigoso. Quando isso acontecia, eu apertava o passo e
ia por uma estrada que dava nos fundos do matadouro, que deixava a viagem um
pouco mais curta, quando chegava por aquele lado, eu via o que tinha de pior,
carcaรงas podres, sangue, couro cheio de bicho, larvas, moscas varejeiras, no
chรฃo escorria um caldo extremamente repugnante, no qual boiava tudo aquilo,
atraindo urubus imensos, mas como nรฃo tinha jeito, eu ia assim mesmo.
Minha avรณ sempre dizia para nรฃo pegar essa estrada perto do morro, pois
era um caminho ermo, poderia ter alguรฉm ร espreita e era na mata onde moravam
os seres sobrenaturais, os espรญritos por assim dizer, pois estรกvamos no fim do
mรชs de outubro, dia das bruxas, adentrando o dia de todos os santos e o dia de
finados, dias nos quais “as almas saiam de dentro da terra e o diabo as mandava
vagar pela floresta atrรกs de almas indefesas”, dizia ela para me assustar, eu
acho.
O que mais tem em Valador sรฃo casos bizarros, os homens contavam histรณrias
malucas enquanto bebiam no bar e as beatas conversavam na calรงada depois da
missa, todos adoravam comentar que viram
a mula sem cabeรงa, o lobisomem, falavam sobre “o menino do pescoรงo virado”, “as
meninas penduradas pelos pรฉs” e as bruxas mais famosas da cidade, “as mulheres
que viravam patas”.
Eu ouvia minha avรณ falar sobre elas, mas eu nunca tinha visto, na
verdade, acho que ninguรฉm nunca viu, eu nรฃo sabia realmente o que era uma
bruxa, mas a maioria dizia que eram mulheres que faziam feitiรงos e pediam
coisas para o diabo em troca das almas delas ou das almas de outras pessoas.
Pela crendice, as mulheres foram amaldiรงoadas por praticarem magia e que no
dia das bruxas se transformavam em patas, saiam voando pela cidade e conseguiam
ouvir todas as conversas e segredos, por isso as vezes, alguรฉm se atrevia a
procurar por elas no morro pra ver se elas sabiam de alguma coisa de alguรฉm
importante, elas tambรฉm faziam feitiรงos para aqueles que desejavam obter amor ou
morte de alguรฉm, dizem que era assim que elas conseguiam viver.
Um dia, me atrasei para ir buscar os restos, minha avรณ disse para ir
correndo porque aquele era um dia muito ruim para se estar na rua, que as almas
castigadas sairiam pela noite e que de vez em quando elas levavam alguma pessoa
viva para o inferno por engano. Ao ouvir aquilo, me apressei em chegar no
matadouro, catar o que encontrasse, sair bem rรกpido de lรก e voltar para casa. Jรก
ficando escuro, peguei o balde que dessa vez nรฃo estava tรฃo pesado porque as
pessoas jรก tinham chegado na minha frente, entรฃo para cortar caminho, peguei a
estrada dos fundos, que ficava paralela ao rio e que chegava ao pรฉ do morro.
Tinha chovido no dia anterior, naquele trecho havia muita lama, nรฃo tinha
luz de nenhum poste por perto, mas o cรฉu estava brilhando, de tรฃo limpo, as
estrelas e a lua que empurravam o sol iluminavam o caminho, tambรฉm conseguia me
orientar ao avistar algumas casas, com os pequenos fogareiros se ascendendo, um
pouco mais a frente tinha uma casa maior com cinco janelas, cada uma com
candeeiro, ao lado, no quintal, uma grande fogueira e em volta dela estavam
cinco mulheres.
Naquele momento eu parei, fiquei com uma sensaรงรฃo estranha, como se algo
me chamasse e em vez de ir embora pela estrada, peguei uma trilha que ia direto aquela casa, caminhei um pouco, machuquei minhas pernas nos galhos caรญdos
mas cheguei bem perto, dei de cara com uma cerca cheia de espinhos gigantes,
mas com algumas frestas e foram por elas que eu assisti algo que jamais poderei descrever totalmente.
Reunidas em volta da fogueira, as mulheres estavam sem nenhuma roupa, falando
algo que parecia ser uma reza, uma cantiga ou como minha avรณ costumava dizer, um
feitiรงo, como se estivessem invocando alguma coisa, eu pensei que poderiam
estar pedindo coisas boas, mas foi apenas um pensamento passageiro, pela cena,
pediam algo que nรฃo pertencia a este mundo. De mรฃos dadas, as mulheres comeรงaram
a girar em volta do fogo e em uma espรฉcie de transe, diziam:
“Que venha claro como o dia
O segredo na noite revelado
Nรณs voamos por cima
Arvoredo vai por baixo”
Depois de repetirem o verso inรบmeras vezes, uma torrente de ar balanรงou
as รกrvores, as mulheres quebraram o cรญrculo, soltaram um grito conjunto que
arrepiou todo o meu corpo, espantando atรฉ os pรกssaros das รกrvores, de repente,
todas elas comeรงaram a flutuar lentamente, indo em direรงรฃo a lua, seus corpos
iam ficando contorcidos, deformados, o tronco a diminuir, as costelas pareciam
ter sido quebradas e compactadas ao tronco, junto as entranhas, dava para ouvir
o barulho de ossos estalando, os joelhos viraram para trรกs, juntando-se as
coxas, o pescoรงo se alongava, repuxando a cabeรงa e empurrando o peito para
frente, a pele ia se encrespando e dos poros saiam penas pretas, enquanto que no
rosto, a boca e o nariz se uniam, tomavam forma de um bico rijo e cinza, os
olhos tomavam aspecto preto e amarelado, os cabelos caรญram e no topo da cabeรงa ficaram
penas avermelhadas.
Por fim, os braรงos jรก sem as mรฃos mostravam as longas asas cobertas de penas,
restara somente da forma humana parte da voz, que misturadas aos grasnados de
um pato, voltaram conjurar o feitiรงo. Assim as mulheres transmutadas em patas,
bateram as asas e levantaram voo por sobre as รกrvores.
Depois de assistir todo esse ritual, nรฃo tinha outra coisa a fazer a nรฃo
ser sair correndo, nem vi para onde estava indo, tropecei e deixei cair o balde
com os pedaรงos de osso que saรญram rolando pela trilha, catei os que estavam a
mรฃo, cheios de terra e folhas, coloquei de volta no balde, pulei o barranco e
consegui chegar de volta na estrada de terra, subi a ladeira em dois segundos e
dobrei a esquina em direรงรฃo ร Avenida.
Nunca corri tanto, eu olhava para cรฉu jรก totalmente escuro para ver se
alguma pata estava atrรกs de mim, sem fรดlego passei pela praรงa e finalmente
dobrei na rua cinquenta, a minha casa era a รบltima. Ao ver os vizinhos
conhecidos, parei de correr, ofegante, pensando que minha avรณ ia me esfolar,
alรฉm de jรก ser muito tarde, estava toda arranhada, lasquei o balde, perdi
metade dos pedaรงos de carne lรก na mata e os que sobraram estavam sรณ a lama.
Eu
estava perdida, ai de mim se dissesse que a razรฃo por ter chegado naquele
estado fosse por ter parado em algum lugar, ainda mais chegar dizendo que vi bruxas
danรงando e invocando o diabo, que a histรณria era verdadeira, nem pensar, era
melhor falar que algum cachorro correu atrรกs de mim, me atacou e eu rolei com ele,
balde e tudo pelo mato, era melhor inventar isso do que dizer que eu tinha
acabado de ver as mulheres que viravam patas.
Quando cheguei em casa, entrei pela cozinha, larguei o balde imundo, enchi
um copo d’รกgua direto da moringa e enquanto tomava tudo em um gole sรณ, eu
tremia, minha mente voltava para aquela cena, entรฃo, minha avรณ chegou, parada
na porta olhava para mim e eu ao olhar de volta para ela, notei em seu
semblante, algo que fez ficar paralisada, porque ao invรฉs de estar com raiva, ela
estava rindo, levantou a mรฃo e com o braรงo estendido, apontou para o calendรกrio
pregado na parede, era 31 de Outubro.
As Mulheres que viravam Patas
Evelyn Veiga
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