10 de outubro de 2020

Os Cรฃes de Valador - Contos

Ao tentar cortar caminho para fugir de uma tempestade e chegar logo em sua casa, uma mulher passou por engano por um atalho que levava a cidade de Valador, um lugar afastado, cercado por um grande rio, com habitantes de expressรฃo carrancuda e pouco hospitaleiros, poucos eram os que viajam atรฉ lรก, pois se ouviam inรบmeras histรณrias bizarras e casos inexplicรกveis de pessoas que iam e nรฃo regressavam, a prรณpria mulher tinha receio de sequer cruzar em frente a ponte que levava atรฉ a cidade.
De repente no meio da estrada, surgiu uma caixa, como se tivesse sido colocada lรก de propรณsito, o objeto inesperado fez a mulher frear bruscamente, ao descer do carro para ver o que tinha na caixa, encontrou trรชs pequenos cachorros abandonados e pensara que provavelmente algum morador perverso de Valador,  tivera realizado tamanha maldade e decidiu levรก-los para casa com ela.
Os cรฃes eram alegres e barulhentos, latiam para tudo e todos, tinham os pelos completamente pretos, eram do mesmo tamanho, pareciam ser um รบnico cachorro de tรฃo iguais. Logo se adaptaram a casa e conquistaram a nova dona, e passaram a dormir na cama com ela. Mas, nรฃo demorou muito tempo, depois de chegar dessa viagem, para que a mulher comeรงasse a se sentir mal.
A mulher passou a manifestar uma doenรงa desconhecida, com sintomas terrรญveis e paralisantes, nenhum mรฉdico que consultara, conseguiu um diagnรณstico e em pouco tempo, a doenรงa idiopรกtica, corroera o fรญsico, a disposiรงรฃo e a lucidez, sua mente divagava, seu corpo ficara cada vez mais estรกtico, submerso em brumas, enquanto dormia, entrava em um estado de torpor e saรญa de sua boca, gritos com notas mรณrbidas e discrepantes de agonia.
Ao vagar pela casa, a mulher foi adquirindo um estado de semiconsciรชncia, era como um som distante, uma sombra que se esgueirava pelas paredes, nรฃo tinha como fazer qualquer atividade, restaram para lhe fazer companhia, seus trรชs pequenos cรฃes. 
Com o passar dos dias, a mulher nรฃo conseguia mais caminhar como antes, e ficava a maior parte do tempo na cama. Ela percebera que estranhos eventos comeรงaram a ocorrer, os cรฃes antes bagunceiros, adotaram uma postura diferente, sisudos, farejavam o ar e olhavam paras as quinas, como se alguรฉm ali estivesse, nรฃo se alimentavam e ao invรฉs de dormirem com a dona, faziam uma estranha vigรญlia, nรฃo subiam mais na cama, ficavam no chรฃo, um ao lado esquerdo, outro ao lado direito e o terceiro aos pรฉs do leito, esperavam a mulher adormecer e ficavam atentos a aqueles ruรญdos que saรญam de dentro do corpo que estava tomando um aspecto disforme.
Por fim a mulher nรฃo levantara mais, apenas gemia, gritava e se contorcia, de sua respiraรงรฃo saรญa um odor purulento, de seus poros, suor cinza, de sua boca, saliva negra e quente. Os cรฃes continuavam a vigรญlia junto a cama e observavam a mulher que tossia, arrotava e cuspia uma lama pestilenta, cujas nรณdoas se espalhavam pelos lenรงรณis.
Os cรฃes entรฃo se levantaram e comeรงaram a uivar incessantemente, olhavam para as quinas e para o teto, lรก estava uma sombra que nรฃo possuรญa forma humana, mas sim de um cรฃo, pingava de seu focinho, escorria pelos dentes e lรญngua uma quantidade infinita de larvas raquรญticas, que caรญam em cima do corpo da mulher. Foi nesse momento que se ouviu um som que transcende a voz humana e que somente os cรฃes puderam decifrar, a sombra dizia de maneira ininterrupta: “Comam!"
E assim os cรฃes o fizeram, em um รบnico salto, chegaram ao alto da cama onde jazia a mulher, ao sentir a presenรงa de seus tรฃo amados cachorros, abrira os olhos, mas nรฃo conseguia se mexer, ao tentar falar saรญa apenas bolhas de chorume e seu rosto e corpo coberto pelas larvas, queimava e a pele se transformava em feridas.
A matilha comeรงara a se alimentar, os cรฃes sob as ordens da sombra monstruosa, destroรงaram pernas e braรงos, fuรงando a barriga, rasgando a pele e estourando as vรญsceras, um banquete com uma melodia infernal, de cheiro indescritรญvel e visรฃo aterradora, os cรฃes nรฃo pararam de comer as larvas, as entranhas e os ossos da mulher e mesmo sem traqueia, cordas vocais, laringe e pulmรตes, ainda gritava e rosnava sons de outro mundo.
Ao amanhecer, depois de uma noite de pesadelo, tamanho foram os barulhos medonhos e desconhecidos que ouviram, os vizinhos chegaram ร  casa da mulher e lรก viram e que nenhuma palavra seria capaz de transmitir aquela cena, pois nรฃo fazia parte de uma coisa humana, com odor repugnante, a casa estava tomada pelas larvas, nรฃo eram mais raquรญticas, mas grandes, gordas, que exalavam a morte e expeliam a peste por todos os lados. Nem a mulher, nem os cรฃes foram encontrados.
OS CรƒES DE VALADOR
Evelyn Veiga

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