Mostrando postagens com marcador contos. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador contos. Mostrar todas as postagens

21 de abril de 2021

Dica de Leitura: Contos de Imaginação e Mistério

Em 1919 a editora londrina George G. Harrap & Co. lançou uma antologia de contos de Edgar Allan Poe, que àquela altura já era reconhecido como o pai das histórias de suspense e mistério. 

A edição, porém, não se limitava a reproduzir as narrativas: luxuosa, ela foi ilustrada pelo irlandês Harry Clarke (1889-1931). É exatamente essa edição que o selo Tordesilhas lança no Brasil, mas com um precioso acréscimo: posfácio de Charles Baudelaire (1821-1867), primeiro tradutor de Poe para o francês e a reconhecer a genialidade do escritor norte-americano.

Estrelas: 5/5 ⭐⭐⭐⭐⭐Editora: Tordesilhas Edição: 1ª edição (1 abril 2012) Idioma: Português Capa dura: 424 páginas

4 de novembro de 2020

Contos: O Jardim da Casa Desconhecida

 
Já estava entardecendo, mas eu ainda conseguia ver o jardim. Despertei em meio a uma paisagem natural, um bosque com trilhas, árvores e pedras ao redor, o meu olhar se perdia por entre pinheiros, bétulas, tílias, carvalhos que pareciam ter séculos de idade e salgueiros com seus ramos longos e pendentes.

Ao meu redor vários arbustos, veigelas floridas se destacavam fazendo o contorno dos troncos das árvores, hortênsias, narcisos, violetas, jasmins, gerânios, sálvias-vermelhas, lavandas, margaridas, verbenas e camélias adornavam um lago coberto por ninfeias e vitórias-régias, além de muitos outros elementos que cresciam sem nenhuma intervenção humana. Ao levantar, notei estar cercado por esculturas de gesso, estranhas estátuas de homens e mulheres velhos, vestiam roupas comuns, um menino com uma boina e sapatos gastos, uma menina de vestido, tinha lágrimas escorrendo pelo rosto e se agarrava a uma boneca, todos pareciam ter uma expressão de profunda tristeza e sofrimento.

Olhando a paisagem percebi uma coisa, não me lembrava de como tinha chegado até este lugar, de ter saído para caminhar, passado pelas árvores e de me deitar em meio a clareira. Quando fiquei totalmente desperto, não via ou ouvia nenhum animal, em meio a tantas flores não escutava abelhas zumbindo, besouros ou grilos voando sobre as folhas, nem mesmo aranhas tecendo suas emaranhadas teias e no lago não havia peixes, sapos ou salamandras, nem mesmo libélulas dançavam na superfície da água.

Parei um pouco para reorganizar as ideias, busquei olhar mais à frente, para o horizonte, talvez assim conseguisse me localizar além do bosque, olhava para cima, não sabia a hora exata, mas naquele momento o céu é uma aquarela de infinitas cores. Um vislumbre ver sol e lua ao mesmo tempo, a dama de prata surgindo ao leste, o sol já se pondo ao oeste e para o meu contentamento, embaixo do círculo dourado que estava ficando com tons de laranja e vermelho, estava a silhueta gigantesca de uma construção, primeiro monumento feito pelo homem que avistava em meio a natureza.
Eu provavelmente devia ter vindo de lá, pois não conseguia identificar nenhuma outra edificação em nenhuma outra direção. Talvez, ao me afastar demasiadamente da casa, eu tenha parado para descansar, caído em sono profundo e conseguido despertar apenas ao entardecer.

Mesmo aliviado por ter para onde ir e seguir a diante pelo caminho da alameda, fui tomado por um sentimento de tensão, a cada passo dado, sentia como se alguém ou alguma coisa me observasse, tentava não alimentar essa sensação pois não havia ser neste lugar que caminhasse além de mim, não havia vida humana neste bosque além da minha. Deixei os temores de lado e comecei a andar para alcançar a casa, pelo tamanho monumental do contorno que ela projetava no horizonte parecia ser uma mansão com muitos cômodos.
Segui andando, mas, algo peculiar acontecia, apesar de caminhar bastante e de sentir o tempo passar, não parecia nem um pouco que tinha me aproximado da casa, sua posição era a mesma, ao olhar para o céu, o sol ainda não tinha se posto, o tom alaranjado e vermelho já estavam me deixando nervoso, a lua não chegou no seu apogeu, o véu da noite não cobriu o céu, tão pouco trouxe a resplandescência das outras estrelas. O céu que contemplei com tamanha admiração há pouco tempo, era o mesmo que naquele instante me deixava incomodado e aflito.
A paisagem antes exuberante que me despertava atenção também já estava perdendo o seu brilho, pois seguia incessantemente e nada parecia mudar, as mesmas flores, a mesma trilha. Percebi algo perturbador, o lago não tinha borda, não enxergava caminho para chegar até a margem, naquele espaço só existia escuridão.
Não tinha como eu estar andando em círculos, a estrada não fazia curvas, a casa, ou seja, lá o que aquilo fosse, continuava no horizonte, sol e lua ganharam um aspecto detestável de minha parte, não se moveram nem por um momento de seus lugares, eles, juntamente com as estátuas, flores e árvores eram privilegiadas ao assistirem a minha caminhada desafortunada.
Por um tempo fiquei sem saber o que fazer, não sabia se pernoitava no caminho e continuava na manhã seguinte, com a luz do dia para me guiar ou se continuava dessa forma, caminhando sem chegar a lugar algum. De repente pensei na possiblidade de passar a noite aqui, mesmo que não tivesse visto nada que pudesse ameaçar a minha vida, tinha essa sensação horrível e sufocante, o ar denso, sem vento, junto as estátuas me observando, devia ser ainda pior na escuridão e no silêncio da madrugada. Decidi então ir caminhando, mesmo indo devagar pela trilha era melhor do que ficar parado.
No fim de tarde é costume ventos do leste abrandarem o calor, mas, nem mesmo uma brisa balançava as árvores, pareciam feitas de pedra, seriam mais bonitas com o farfalhar das folhas, com o cantar dos pássaros em seus galhos, com o voo de joaninhas e borboletas pelas plantas, mas, nada acontecia, sentia um enorme cansaço, mesmo achando que adormeci por várias horas, minhas forças se dissipavam.
O estado em que as coisas se encontravam era tão bizarro que fiquei sem tomar nenhuma atitude relevante além de caminhar, tinha perdido a noção do tempo, caminhava como se fosse uma missão a realizar, uma sentença a cumprir, por um momento me sentia conformado, mas, isso mudara em um instante, pois mais à frente, o medo voltou a tomar meu corpo, o sentimento de pavor tomava a minha mente por completo, notava alguém muito próximo de mim e tive a nítida impressão de ter sido tocado, de súbito me virei para trás como se algo estivesse lá, mas não havia ninguém, olhava para os lados, procurando alguém à espreita, mas, nada. Os únicos olhos além dos meus eram os das estátuas, a mais próxima era de uma criança, uma menina de vestido, sapatilhas e tranças no cabelo, com o rosto voltado para cima, olhos suplicantes para o céu, céu este que nem queria mais contemplar.

Não sei se minha mente estava a pregar peças ou a me alertar, se o meu cansaço me traía ou me ajudava. Em questão de segundos, por puro instinto, comecei a correr, mas de maneira displicente não fui muito longe, tropecei, no meio do caminho tinha uma pedra, tentei ficar de pé, mas em vão, não consegui conter a queda e me lancei em direção as flores, belos montes de violetas e lavandas amorteceram meu corpo, já as pobres coitadas ficaram destruídas, despetaladas, com os ramos quebrados e as folhas caíram no chão. Consegui levantar, atordoado, pensei em praguejar e amaldiçoar o lugar, mas eu não precisava, já era um local maldito sem o desejo de ninguém. No entanto, depois desse evento, alguma coisa aconteceu.
Quase que imediatamente, uma forte ventania balançou tudo ao meu redor, me lançando em direção a silhueta da casa e, tamanha a surpresa, a paisagem tinha mudado, finalmente avistei algo inédito, o fim da alameda. Cheguei em um círculo gramado e no meio um enorme arco gótico, esculpido e ornamentado com flores, embaixo, uma távola redonda com vasos cheios de belíssimas rosas. Seguindo o novo caminho, largo, delimitado por canteiros de murtas e com uma grande escadaria que descia em direção a outro jardim, este parecia estar sobe os cuidados de alguém e o melhor de tudo, a mansão parecia estar mais próxima.
Os caminhos estavam bem definidos, de contornos rígidos com cercas vivas de formas geométricas planejadas, os arbustos compactos, perfeitamente cortados eram de um verde tão escuro e denso que pareciam ter sidos pintados à mão.

Nessa parte do jardim, ciprestes podados em triângulos agudos, surgindo mais à frente, bancos adornados com pedras pretas, colunas elevadas com os topos cobertos de rosas e grandes globos luminosos. As únicas coisas que restaram do jardim anterior foram as estátuas, mas estas eram maiores, mais bonitas e feitas de mármore, corpos de mulheres de esplêndida beleza em trajes cerimoniais e homens com grande estatura e músculos aparentes, ao olhar atentamente para elas, percebei uma característica das estátuas vistas no bosque, todas elas possuíam semblante triste e desesperado, como se no momento em que foram esculpidas, estivessem olhando para a morte.
Os espaços a minha frente foram milimetricamente pensados, estava certo de que os monumentos foram construídos por mãos humanas, assim como a mansão, fazendo com que os jardins fossem uma extensão da casa, ela já aparecia além do contorno, tinha janelas imensas, adornadas por esculturas de pedra e com vidros completamente pretos, no entanto, ainda não conseguia ver como chegar até ela.
Os traçados dos caminhos foram cobertos com cimento e placas de cerâmica, delimitados por cercas vivas muito fortes, com estrutura lenhosas, feitas de viburno podado, formando um canteiro perfeito para a as flores, essas, bem diferentes, não cresciam mais sozinhas a esmo pelo chão, foram escolhidas para harmonizar o espaço, para serem esculpidas e comportadas em cachepôs, vasos decorados e canteiros de vários metros de extensão e altura. Rosas brancas, rosas do éden, amarelas e vermelhas, enormes e com espinhos maiores ainda, caules tão verdes que nem se assemelhavam a algo natural, mas sim com estruturas de ferro e com folhas gigantescas.
No chão um caminho inteiro revestido de amor-perfeito, tulipas amarelas, vermelhas e azuis formavam figuras geométricas, losangos, triângulos, cruzamentos, todos iam em direção a uma grande fonte e no centro dela, um imenso chafariz de onde jorrava água cristalina. Ao final de cada gigantesco retângulo havia pergolados com caramanchões no topo, eu ficava parado embaixo deles para tentar recuperar as forças, estava extremamente cansado, não tinha feito nada além de dar voltas nesse jardim de proporções colossais, sem nenhuma esperança de conseguir sair.
Aquela poda escultural das vegetações, a simetria, estavam me deixando enjoado, centenas de metros nessa perspectiva, em meio àquela organização, sem nada fora do lugar, como tudo aquilo estava tão bem podado, aparado, vasos com arbustos completos, plantas amarradas em uma perfeição que me deixava agoniado, não existia nada, além de flores, vasos, canteiros, trilhas, encruzilhadas, fontes, estátuas, mas nenhuma simples formiga, centopeia ou lagarta passeava pelo chão, o único barulho que quebrava o silêncio era a queda d’água do chafariz.
Mesmo ao livre eu já estava sufocando, queria gritar, chamar alguém, não tinha pensado nisso antes, tinha que chamar por socorro, as pessoas que cuidavam do jardim viriam me ajudar, gritei com as forças que me restavam, mas não veio uma só alma. Mais uma vez comei a correr, apenas passando pelos caminhos intocados, sem defeitos, além de nunca ter conseguido ver alguma passagem para chegar até a casa, não tinha ponte, portão, muro, nada além de arbustos grandes, apesar de parecer mais próxima desde quando comecei essa jornada, ela ainda estava inatingível, parecia não existir ninguém dentro da casa que pudesse me ver do lado de fora, infinitas janelas, mas nenhuma aberta, cercadas por vidros intransponíveis, nada devia passar por eles, nem mesmo a minha imagem.
Então, veio a minha cabeça, uma ideia assustadora, um temor percorreu todo o meu corpo, se estava preso aqui fora sem ninguém na casa para me ver e ouvir, talvez, pessoas lá dentro estivessem presas também. E eu como um louco querendo entrar. Não havia outra explicação, empregados deviam receber ordens para deixarem as pessoas presas, sim, essa casa teria que ter empregados, alguém deveria ser encarregado de cuidar dessas malditas flores, podar os arbustos e limpar a fonte.
Comemorei cedo demais, o sentimento de derrota tomava conta de tudo, mais uma vez fiquei desnorteado, não entendo como vim parar nessa situação, não me lembrava se alguém me trouxera até aqui ou se fui convidado e vim de espontânea vontade. Não tinha mais forças, caí de joelhos e sem querer voltei a olhar para o céu, agora mudado, o sol enfim estava se pondo, a lua brilhava esplendorosa, como um pincel descarregando a tinta na água e os traços pretos azulados da noite empurravam os últimos raios vermelhos para o oeste pintando constelações magníficas por todo o céu.

Tal cena ficou impressa nos meus olhos, presa para sempre em minha mente, não permitiria mais que o pavor e o medo me controlassem, mesmo não querendo, a casa era o único lugar para o qual poderia ir.  Comecei a pensar no que poderia ter me feito sair do outro jardim. Depois de caminhar por horas e ver as mesmas coisas passarem centenas de vezes, o único acontecimento diferente foi ter tropeçado e caído sobre os arbustos e estragar algumas flores. Quem sabe o fato de ter alterado o estado “perfeito” das coisas, tivesse perturbado a entidade que mora aqui e que tenha montado tudo isso, pois somente um ser de outro mundo para fazer essas coisas sem a presença de outras pessoas. Talvez ela não gostasse que mexessem nas suas flores e estragassem seu trabalho, ficaria furiosa se pisassem na grama tão bem cortada e arrancassem as plantas de seus vasos. Eu poderia estar apenas tendo pensamentos loucos, mas eu não tinha mais nada a fazer a não ser tentar.
Sendo assim, saí correndo pela grama, com chutes, arranquei vários tufos, fazendo inúmeros buracos, joguei terra pelo belo caminho polido, tirei vários picos dos ciprestes podados, pisei nas azaleias, amassei as tulipas, subi nos canteiros pisoteando as murtas com toda força, escalei as pérgolas e puxei os caramanchões, me transformei no vento forte que eu queria que aparecesse e me levasse embora.
O que mais chamava atenção nesse jardim com certeza eram as rosas, parti enraivecido para cima de todas que encontrei, com elas destruídas, certamente alguém viria e eu aproveitaria a oportunidade para fugir. Derrubei dezenas de vasos, as rosas caíam aos montes pelo chão, pisei nos ramos, arranquei pétala por pétala, rasgava e picava as folhas em milhares de pedaços, minha fúria era tanta que nem percebi que enquanto atacava era também golpeado, os espinhos furaram cada centímetro das minhas mãos, meus braços, pescoço e rosto foram cortados, o sangue manchava minhas roupas, caía nas rosas e pingava pelo caminho, mesmo depois de tudo isso nada aconteceu.

Eu estava ofegante, desesperado, cansado e sangrando também, senti o gosto de sangue descer pela garganta, eu iria morrer naquele lugar, envenenado pelos espinhos das roseiras. Esgotado, olhei para a casa que nunca alcancei, nem saberia se estaria a salvo se chegasse até ela, já desorientado, caminhei lentamente até a fonte no centro, morreria, mas tinha feito um belo trabalho destruindo aquele jardim amaldiçoado, entrei na fonte, manchei a água límpida com meu sangue, estendi minhas mãos até o chafariz, aparei a água e bebi, os goles pareciam infinitos, como se fosse a última vez que tomava o elixir da vida, tirei minhas vestes e me banhei na fonte com água tingida de vermelho.
Meu corpo ficaria preso junto as estátuas para sempre, minha mente em devaneio pensava que talvez elas tivessem sido pessoas reais antes de tudo, desistiram de procurar uma saída e morreram. Como em um último ato de uma ópera que termina em tragédia, mergulhei esperei pelo meu fim, mas ao invés de sentir a morte se aproximar, o que eu vi parecia ser um milagre, cristais emergiram e brilhavam na superfície da água, puxando o último ar de meus pulmões, me levantei, senti uma brisa leve a soprar e tocar meu rosto molhado, a lua pairava a cima da mansão, ao olhar para a casa, todas as janelas estavam se abrindo, raios de uma luz extremamente branca emanavam do interior, duas grandes portas se abriram e diante delas uma passarela de mármore ia surgindo, possuía  dezenas de metros e chegava até a fonte, até mim.
Não acreditava no que estava vendo, mesmo assim não pensei em mais nada a não ser levantar e ir em direção a porta, me debrucei sobre o beiral, fiz uma força sobre-humana para sair da fonte. Cambaleante, andei pela passagem e chegando enfim diante das portas abertas, entrei.

Eu estava ofegante, desesperado, cansado e agora sangrando também, senti o gosto de sangue descer pela garganta, eu iria morrer nesse lugar, envenenado pelos espinhos das roseiras. Esgotado, olhei para a casa que nunca alcancei, nem saberia se me salvaria se chegasse até ela, já desorientado, caminhei lentamente até a fonte no centro, morreria, mas tinha feito um belo trabalho destruindo aquele maldito jardim, entrei na fonte, manchei a água límpida com meu sangue, estendi minhas mão até o chafariz e aparei um pouco d’água e bebi, goles infinitos de água, como se fosse a última vez que tomava o líquido dava a vida, tirei minhas vestes e me banhei na fonte, agora com a água tingida de vermelho.

Como em último ato de uma ópera que termina em tragédia, esperei pelo meu fim, mas ao invés de ver a morte se aproximar, o que eu vi parecia ser um milagre, senti uma brisa leve tocar meu rosto, a lua pairava em cima da mansão, ao olhar para a casa, todas as suas janelas estavam se abrindo, no interior, luzes começaram as surgir e como por puro encanto, duas grandes portas se abriram e diante delas uma passarela era feita instantaneamente e chegava até a fonte, até mim.

Não acreditava no que estava vendo, mas mesmo assim não pensei em mais nada a não ser levantar e ir em direção a porta. Cambaleante, me debrucei sobre o beiral, fiz uma força sobre-humana, saí da fonte e caminhei pela passagem, cheguei até as portas abertas e entrei.

O Jardim da Casa Desconhecida

Evelyn Veiga

6 de outubro de 2020

O Gigante Egoísta - Oscar Wilde

Toda tarde, quando vinham da escola, as crianças costumavam brincar no jardim do Gigante.Era um jardim grande e gracioso, com grama verde e macia. Aqui e ali, sobre a grama, destacavam-se flores lindas como estrelas, e havia doze pessegueiros que, na primavera, desabrochavam em delicadas flores em tons de rosa e pérola, e no outono davam frutos deliciosos. Os pássaros pousavam nas árvores e cantavam com tanta doçura que as crianças costumavam parar as brincadeiras para ouvi-los.
— Como somos felizes aqui! — gritavam umas para as outras.
Um dia, o Gigante voltou. Ele fora visitar um amigo, o ogro da Cornualha, e ficara com ele por sete anos. Terminados os sete anos, ele havia dito tudo o que tinha a dizer, pois seu assunto era limitado, e decidiu voltar ao próprio castelo. Quando chegou, viu as crianças brincando no jardim.
— O que estão fazendo aqui? — gritou com uma voz muito áspera, e as crianças fugiram.
— Meu jardim é meu jardim — disse o Gigante. — Qualquer um consegue entender isso, e não vou deixar que ninguém além de mim brinque nele.
Então, ele construiu um muro alto ao redor do jardim e colocou uma placa de advertência.
Invasores serão castigados!
Era um Gigante muito egoísta.
As pobres crianças não tinham mais onde brincar. Tentaram brincar na estrada, mas era muito poeirenta e cheia de pedras duras, e elas não gostaram. Costumavam passear em torno do muro alto quando as aulas terminavam, conversando sobre o belo jardim lá dentro.
— Como éramos felizes lá — diziam umas às outras.
Então chegou a Primavera, e em todo o país havia florzinhas e passarinhos. Somente no jardim do Gigante Egoísta ainda era Inverno. Os pássaros não queriam cantar lá porque não havia crianças, e as árvores se esqueceram de florescer. Um dia, uma linda flor ergueu a cabeça da grama, mas, quando viu a placa de advertência, teve tanta pena das crianças que se recolheu de volta à terra e foi dormir. As únicas pessoas que ficaram satisfeitas foram a Neve e a Geada.
— A Primavera esqueceu este jardim — gritaram elas —, então vamos morar aqui o ano todo.
A Neve cobriu a grama com seu grande manto branco e a Geada pintou todas as árvores de prata. Depois, convidaram o Vento Norte para ficar com elas, e ele veio. Estava envolto em peles, rugiu o dia inteiro pelo jardim e derrubou os chapéus das chaminés.
— Que lugar encantador — disse ele —, precisamos convidar o Granizo para nos visitar.
Então o Granizo veio. Todos os dias, por três horas, ele sacudia o telhado do castelo até quebrar a maior parte das telhas de ardósia, depois corria por todo o jardim o mais rápido que conseguia. Vestia cinza e seu hálito era como gelo.
— Não consigo entender por que a Primavera está tão atrasada — disse o Gigante Egoísta, sentado à janela, olhando para o jardim branco e frio. — Tomara que o tempo mude.
Mas a Primavera nunca veio, nem o Verão. O Outono deu frutos dourados a todos os jardins, mas, ao jardim do Gigante, não deu nenhum.
— Ele é muito egoísta — disse o Outono.
Por isso, era sempre Inverno lá, e o Vento Norte, o Granizo, a Geada e a Neve dançavam entre as árvores.
Uma manhã, o Gigante estava deitado acordado na cama quando ouviu uma linda música. Soou tão doce aos seus ouvidos que ele pensou que deviam ser os músicos do Rei a passar. Na verdade, era só um pequeno pintarroxo cantando do lado de fora da janela, mas fazia tanto tempo desde que o Gigante ouvira um pássaro cantar em seu jardim que parecia a música mais bonita do mundo. Então o Granizo parou de dançar sobre a cabeça dele, e o Vento Norte deixou de rugir, e um perfume delicioso o alcançou através da janela aberta.
— Creio que a Primavera finalmente chegou — disse o Gigante, pulou da cama e olhou para fora.
O que ele viu?
Teve uma visão magnífica. Através de um pequeno buraco no muro, as crianças haviam entrado e estavam sentadas nos galhos das árvores. Em todas as árvores que ele podia ver havia uma criancinha. E as árvores ficaram tão felizes por ter as crianças de volta que se cobriram de flores e balançaram os braços delicadamente acima da cabeça dos pequeninos. Os pássaros voavam e gorjeavam com prazer, e as flores espiavam por entre a grama verde e riam. Era uma cena adorável, mas num canto ainda era Inverno. Era o canto mais distante do jardim, e nele havia um garotinho. Era tão pequeno que não conseguia alcançar os galhos da árvore e vagava em torno dela, chorando amargamente. A pobre árvore ainda estava muito coberta de Geada e Neve, e o Vento Norte soprava e rugia acima dela.
— Suba, garotinho! — disse a Árvore, e inclinou os galhos o mais baixo que pôde; mas o menino era pequeno demais.
E o coração do Gigante se derreteu enquanto ele olhava para fora.
— Como fui egoísta! — disse ele. — Agora sei por que a Primavera não veio para cá. Vou colocar aquele pobre garotinho no alto da árvore e depois derrubar o muro, e meu jardim será o parquinho das crianças para sempre.
Ele realmente lamentava muito o que havia feito. Assim, desceu a escada, abriu a porta da frente delicadamente e saiu para o jardim. Mas, quando as crianças o viram, tiveram tanto medo que fugiram, e o jardim voltou a ser Inverno. Só o garotinho não correu, pois seus olhos estavam tão tomados de lágrimas que ele não viu o Gigante chegar. E o Gigante aproximou-se por trás dele e o pegou gentilmente na mão, e o colocou no alto da árvore. E nesse instante a árvore abriu todas as suas flores, e os pássaros vieram e cantaram nela, e o garotinho esticou os braços, lançando-os ao redor do pescoço do Gigante, e o beijou. E as outras crianças, quando viram que o Gigante não era mais malvado, voltaram correndo, e com elas veio a Primavera.
— Agora o jardim é seu, pequeninos — disse o Gigante. Pegou um grande machado e derrubou o muro.
E quando as pessoas foram ao mercado, às doze horas, encontraram o Gigante brincando com as crianças no jardim mais bonito que já tinham visto.
Durante todo o dia elas brincaram. À noite, foram se despedir do Gigante.
— Mas onde está seu coleguinha? — perguntou ele. — O garoto que eu coloquei na árvore.
O Gigante amava mais esse menino porque ele o beijara.
— Não sabemos — responderam as crianças. — Ele foi embora.
— Vocês devem dizer a ele para vir aqui amanhã com certeza — disse o Gigante. Mas as crianças disseram que não sabiam onde ele morava e nunca o tinham visto antes; o Gigante ficou muito triste.
Toda tarde, quando as aulas terminavam, as crianças vinham brincar com o Gigante. Mas ninguém nunca mais viu o menino que ele amava. O Gigante era muito gentil com todas as crianças, porém tinha saudades do seu primeiro amiguinho e sempre falava dele.
— Como eu gostaria de vê-lo! — dizia com frequência.
Os anos se passaram e o Gigante ficou muito velho e frágil. Não conseguia mais brincar, por isso, sentava-se numa enorme poltrona, observava as crianças em suas brincadeiras e admirava o jardim.
— Tenho muitas flores bonitas — dizia ele. — Mas as crianças são as flores mais lindas de todas.
Numa manhã de inverno, ele olhou pela janela enquanto se vestia. Agora, não detestava o Inverno, pois sabia que era apenas a Primavera adormecida e que as flores estavam descansando.
De repente, esfregou os olhos, admirado, e olhou e olhou. Com certeza era uma visão maravilhosa. No canto mais distante do jardim, havia uma árvore coberta de lindas flores brancas. Seus galhos eram todos dourados, e frutas prateadas pendiam deles, e embaixo dela estava o menino que ele havia amado.
Para o andar de baixo correu o Gigante com grande alegria e sa­iu para o jardim. Correu pela grama e se aproximou da criança. E, quando chegou bem perto, seu rosto ficou vermelho de raiva e ele disse:
— Quem se atreveu a ferir-te? — Pois na palma das mãos da criança havia a marca de dois pregos, e marcas iguais em seus pezinhos. — Quem se atreveu a ferir-te? — gritou o gigante. — Dize-me, que eu hei de pegar minha grande espada e matá-lo.
— Não! — respondeu a criança. — Mas estas são as feridas do Amor.
— Quem és tu? — perguntou o Gigante, e foi tomado por uma estranha reverência, e se ajoelhou diante da criança.
E a criança sorriu para o Gigante e disse:
— Um dia, você me deixou brincar no seu jardim; hoje, virá comigo ao meu jardim, que é o Paraíso.
E, quando as crianças correram naquela tarde, encontraram o Gigante morto debaixo da árvore, todo coberto de flores brancas.

Audioconto Narrado por Guilherme Briggs

O narrador de O Gigante Egoísta é Guilherme Briggs, ator, dublador, diretor de dublagem, locutor, tradutor, desenhista, youtuber e blogueiro brasileiro. Foi a voz de Buzz Lightyear, de Toy Story, Geralt de Rivia, na série da Netflix The Witcher, Mickey Mouse (desde 2009), Cosmo, de Os Padrinhos Mágicos, Superman em A Liga da Justiça e dezenas de outros personagens amados da cultura pop. O tom grave da voz do Gigante foi criada pelo próprio dublador e o conto foi escolhido para explorar seu icônico timbre. 

Sobre o Autor
OSCAR WILDE era um alto e simpático escritor nascia em 1854, em Dublin. Wilde, que mais tarde ficaria conhecido por suas obras O Retrato de Dorian Gray e O Fantasma de Canterville, era orgulhoso de sua terra natal, a Irlanda. 
Escreveu o livro The Happy Prince and other Fairy Tales em 1888, de onde O Gigante Egoísta foi traduzido. O conto, tão famoso que ganhou uma animação em 1972, conta sobre um gigante que não queria crianças em seu jardim. Porém, durante um longo inverno, seu coração começa a amolecer, até que uma das crianças realmente toca sua bondosa alma. A história pode ser vista como um encontro gentil entre o paganismo celta e o cristianismo na Irlanda e em terras gaélicas. 
O cristianismo céltico começou no século V e tinha tradições únicas, diferentes das romanas. Como o próprio autor não se considerava católico até horas antes de sua morte, é possível que este conto seja também uma homenagem à sua mãe, Lady Wilde. De toda forma, a história de redenção e amor do Gigante tornou este conto um clássico de Wilde.