4 de novembro de 2020

Contos: O Jardim da Casa Desconhecida

 
Já estava entardecendo, mas eu ainda conseguia ver o jardim. Despertei em meio a uma paisagem natural, um bosque com trilhas, árvores e pedras ao redor, o meu olhar se perdia por entre pinheiros, bétulas, tílias, carvalhos que pareciam ter séculos de idade e salgueiros com seus ramos longos e pendentes.

Ao meu redor vários arbustos, veigelas floridas se destacavam fazendo o contorno dos troncos das árvores, hortênsias, narcisos, violetas, jasmins, gerânios, sálvias-vermelhas, lavandas, margaridas, verbenas e camélias adornavam um lago coberto por ninfeias e vitórias-régias, além de muitos outros elementos que cresciam sem nenhuma intervenção humana. Ao levantar, notei estar cercado por esculturas de gesso, estranhas estátuas de homens e mulheres velhos, vestiam roupas comuns, um menino com uma boina e sapatos gastos, uma menina de vestido, tinha lágrimas escorrendo pelo rosto e se agarrava a uma boneca, todos pareciam ter uma expressão de profunda tristeza e sofrimento.

Olhando a paisagem percebi uma coisa, não me lembrava de como tinha chegado até este lugar, de ter saído para caminhar, passado pelas árvores e de me deitar em meio a clareira. Quando fiquei totalmente desperto, não via ou ouvia nenhum animal, em meio a tantas flores não escutava abelhas zumbindo, besouros ou grilos voando sobre as folhas, nem mesmo aranhas tecendo suas emaranhadas teias e no lago não havia peixes, sapos ou salamandras, nem mesmo libélulas dançavam na superfície da água.

Parei um pouco para reorganizar as ideias, busquei olhar mais à frente, para o horizonte, talvez assim conseguisse me localizar além do bosque, olhava para cima, não sabia a hora exata, mas naquele momento o céu é uma aquarela de infinitas cores. Um vislumbre ver sol e lua ao mesmo tempo, a dama de prata surgindo ao leste, o sol já se pondo ao oeste e para o meu contentamento, embaixo do círculo dourado que estava ficando com tons de laranja e vermelho, estava a silhueta gigantesca de uma construção, primeiro monumento feito pelo homem que avistava em meio a natureza.
Eu provavelmente devia ter vindo de lá, pois não conseguia identificar nenhuma outra edificação em nenhuma outra direção. Talvez, ao me afastar demasiadamente da casa, eu tenha parado para descansar, caído em sono profundo e conseguido despertar apenas ao entardecer.

Mesmo aliviado por ter para onde ir e seguir a diante pelo caminho da alameda, fui tomado por um sentimento de tensão, a cada passo dado, sentia como se alguém ou alguma coisa me observasse, tentava não alimentar essa sensação pois não havia ser neste lugar que caminhasse além de mim, não havia vida humana neste bosque além da minha. Deixei os temores de lado e comecei a andar para alcançar a casa, pelo tamanho monumental do contorno que ela projetava no horizonte parecia ser uma mansão com muitos cômodos.
Segui andando, mas, algo peculiar acontecia, apesar de caminhar bastante e de sentir o tempo passar, não parecia nem um pouco que tinha me aproximado da casa, sua posição era a mesma, ao olhar para o céu, o sol ainda não tinha se posto, o tom alaranjado e vermelho já estavam me deixando nervoso, a lua não chegou no seu apogeu, o véu da noite não cobriu o céu, tão pouco trouxe a resplandescência das outras estrelas. O céu que contemplei com tamanha admiração há pouco tempo, era o mesmo que naquele instante me deixava incomodado e aflito.
A paisagem antes exuberante que me despertava atenção também já estava perdendo o seu brilho, pois seguia incessantemente e nada parecia mudar, as mesmas flores, a mesma trilha. Percebi algo perturbador, o lago não tinha borda, não enxergava caminho para chegar até a margem, naquele espaço só existia escuridão.
Não tinha como eu estar andando em círculos, a estrada não fazia curvas, a casa, ou seja, lá o que aquilo fosse, continuava no horizonte, sol e lua ganharam um aspecto detestável de minha parte, não se moveram nem por um momento de seus lugares, eles, juntamente com as estátuas, flores e árvores eram privilegiadas ao assistirem a minha caminhada desafortunada.
Por um tempo fiquei sem saber o que fazer, não sabia se pernoitava no caminho e continuava na manhã seguinte, com a luz do dia para me guiar ou se continuava dessa forma, caminhando sem chegar a lugar algum. De repente pensei na possiblidade de passar a noite aqui, mesmo que não tivesse visto nada que pudesse ameaçar a minha vida, tinha essa sensação horrível e sufocante, o ar denso, sem vento, junto as estátuas me observando, devia ser ainda pior na escuridão e no silêncio da madrugada. Decidi então ir caminhando, mesmo indo devagar pela trilha era melhor do que ficar parado.
No fim de tarde é costume ventos do leste abrandarem o calor, mas, nem mesmo uma brisa balançava as árvores, pareciam feitas de pedra, seriam mais bonitas com o farfalhar das folhas, com o cantar dos pássaros em seus galhos, com o voo de joaninhas e borboletas pelas plantas, mas, nada acontecia, sentia um enorme cansaço, mesmo achando que adormeci por várias horas, minhas forças se dissipavam.
O estado em que as coisas se encontravam era tão bizarro que fiquei sem tomar nenhuma atitude relevante além de caminhar, tinha perdido a noção do tempo, caminhava como se fosse uma missão a realizar, uma sentença a cumprir, por um momento me sentia conformado, mas, isso mudara em um instante, pois mais à frente, o medo voltou a tomar meu corpo, o sentimento de pavor tomava a minha mente por completo, notava alguém muito próximo de mim e tive a nítida impressão de ter sido tocado, de súbito me virei para trás como se algo estivesse lá, mas não havia ninguém, olhava para os lados, procurando alguém à espreita, mas, nada. Os únicos olhos além dos meus eram os das estátuas, a mais próxima era de uma criança, uma menina de vestido, sapatilhas e tranças no cabelo, com o rosto voltado para cima, olhos suplicantes para o céu, céu este que nem queria mais contemplar.

Não sei se minha mente estava a pregar peças ou a me alertar, se o meu cansaço me traía ou me ajudava. Em questão de segundos, por puro instinto, comecei a correr, mas de maneira displicente não fui muito longe, tropecei, no meio do caminho tinha uma pedra, tentei ficar de pé, mas em vão, não consegui conter a queda e me lancei em direção as flores, belos montes de violetas e lavandas amorteceram meu corpo, já as pobres coitadas ficaram destruídas, despetaladas, com os ramos quebrados e as folhas caíram no chão. Consegui levantar, atordoado, pensei em praguejar e amaldiçoar o lugar, mas eu não precisava, já era um local maldito sem o desejo de ninguém. No entanto, depois desse evento, alguma coisa aconteceu.
Quase que imediatamente, uma forte ventania balançou tudo ao meu redor, me lançando em direção a silhueta da casa e, tamanha a surpresa, a paisagem tinha mudado, finalmente avistei algo inédito, o fim da alameda. Cheguei em um círculo gramado e no meio um enorme arco gótico, esculpido e ornamentado com flores, embaixo, uma távola redonda com vasos cheios de belíssimas rosas. Seguindo o novo caminho, largo, delimitado por canteiros de murtas e com uma grande escadaria que descia em direção a outro jardim, este parecia estar sobe os cuidados de alguém e o melhor de tudo, a mansão parecia estar mais próxima.
Os caminhos estavam bem definidos, de contornos rígidos com cercas vivas de formas geométricas planejadas, os arbustos compactos, perfeitamente cortados eram de um verde tão escuro e denso que pareciam ter sidos pintados à mão.

Nessa parte do jardim, ciprestes podados em triângulos agudos, surgindo mais à frente, bancos adornados com pedras pretas, colunas elevadas com os topos cobertos de rosas e grandes globos luminosos. As únicas coisas que restaram do jardim anterior foram as estátuas, mas estas eram maiores, mais bonitas e feitas de mármore, corpos de mulheres de esplêndida beleza em trajes cerimoniais e homens com grande estatura e músculos aparentes, ao olhar atentamente para elas, percebei uma característica das estátuas vistas no bosque, todas elas possuíam semblante triste e desesperado, como se no momento em que foram esculpidas, estivessem olhando para a morte.
Os espaços a minha frente foram milimetricamente pensados, estava certo de que os monumentos foram construídos por mãos humanas, assim como a mansão, fazendo com que os jardins fossem uma extensão da casa, ela já aparecia além do contorno, tinha janelas imensas, adornadas por esculturas de pedra e com vidros completamente pretos, no entanto, ainda não conseguia ver como chegar até ela.
Os traçados dos caminhos foram cobertos com cimento e placas de cerâmica, delimitados por cercas vivas muito fortes, com estrutura lenhosas, feitas de viburno podado, formando um canteiro perfeito para a as flores, essas, bem diferentes, não cresciam mais sozinhas a esmo pelo chão, foram escolhidas para harmonizar o espaço, para serem esculpidas e comportadas em cachepôs, vasos decorados e canteiros de vários metros de extensão e altura. Rosas brancas, rosas do éden, amarelas e vermelhas, enormes e com espinhos maiores ainda, caules tão verdes que nem se assemelhavam a algo natural, mas sim com estruturas de ferro e com folhas gigantescas.
No chão um caminho inteiro revestido de amor-perfeito, tulipas amarelas, vermelhas e azuis formavam figuras geométricas, losangos, triângulos, cruzamentos, todos iam em direção a uma grande fonte e no centro dela, um imenso chafariz de onde jorrava água cristalina. Ao final de cada gigantesco retângulo havia pergolados com caramanchões no topo, eu ficava parado embaixo deles para tentar recuperar as forças, estava extremamente cansado, não tinha feito nada além de dar voltas nesse jardim de proporções colossais, sem nenhuma esperança de conseguir sair.
Aquela poda escultural das vegetações, a simetria, estavam me deixando enjoado, centenas de metros nessa perspectiva, em meio àquela organização, sem nada fora do lugar, como tudo aquilo estava tão bem podado, aparado, vasos com arbustos completos, plantas amarradas em uma perfeição que me deixava agoniado, não existia nada, além de flores, vasos, canteiros, trilhas, encruzilhadas, fontes, estátuas, mas nenhuma simples formiga, centopeia ou lagarta passeava pelo chão, o único barulho que quebrava o silêncio era a queda d’água do chafariz.
Mesmo ao livre eu já estava sufocando, queria gritar, chamar alguém, não tinha pensado nisso antes, tinha que chamar por socorro, as pessoas que cuidavam do jardim viriam me ajudar, gritei com as forças que me restavam, mas não veio uma só alma. Mais uma vez comei a correr, apenas passando pelos caminhos intocados, sem defeitos, além de nunca ter conseguido ver alguma passagem para chegar até a casa, não tinha ponte, portão, muro, nada além de arbustos grandes, apesar de parecer mais próxima desde quando comecei essa jornada, ela ainda estava inatingível, parecia não existir ninguém dentro da casa que pudesse me ver do lado de fora, infinitas janelas, mas nenhuma aberta, cercadas por vidros intransponíveis, nada devia passar por eles, nem mesmo a minha imagem.
Então, veio a minha cabeça, uma ideia assustadora, um temor percorreu todo o meu corpo, se estava preso aqui fora sem ninguém na casa para me ver e ouvir, talvez, pessoas lá dentro estivessem presas também. E eu como um louco querendo entrar. Não havia outra explicação, empregados deviam receber ordens para deixarem as pessoas presas, sim, essa casa teria que ter empregados, alguém deveria ser encarregado de cuidar dessas malditas flores, podar os arbustos e limpar a fonte.
Comemorei cedo demais, o sentimento de derrota tomava conta de tudo, mais uma vez fiquei desnorteado, não entendo como vim parar nessa situação, não me lembrava se alguém me trouxera até aqui ou se fui convidado e vim de espontânea vontade. Não tinha mais forças, caí de joelhos e sem querer voltei a olhar para o céu, agora mudado, o sol enfim estava se pondo, a lua brilhava esplendorosa, como um pincel descarregando a tinta na água e os traços pretos azulados da noite empurravam os últimos raios vermelhos para o oeste pintando constelações magníficas por todo o céu.

Tal cena ficou impressa nos meus olhos, presa para sempre em minha mente, não permitiria mais que o pavor e o medo me controlassem, mesmo não querendo, a casa era o único lugar para o qual poderia ir.  Comecei a pensar no que poderia ter me feito sair do outro jardim. Depois de caminhar por horas e ver as mesmas coisas passarem centenas de vezes, o único acontecimento diferente foi ter tropeçado e caído sobre os arbustos e estragar algumas flores. Quem sabe o fato de ter alterado o estado “perfeito” das coisas, tivesse perturbado a entidade que mora aqui e que tenha montado tudo isso, pois somente um ser de outro mundo para fazer essas coisas sem a presença de outras pessoas. Talvez ela não gostasse que mexessem nas suas flores e estragassem seu trabalho, ficaria furiosa se pisassem na grama tão bem cortada e arrancassem as plantas de seus vasos. Eu poderia estar apenas tendo pensamentos loucos, mas eu não tinha mais nada a fazer a não ser tentar.
Sendo assim, saí correndo pela grama, com chutes, arranquei vários tufos, fazendo inúmeros buracos, joguei terra pelo belo caminho polido, tirei vários picos dos ciprestes podados, pisei nas azaleias, amassei as tulipas, subi nos canteiros pisoteando as murtas com toda força, escalei as pérgolas e puxei os caramanchões, me transformei no vento forte que eu queria que aparecesse e me levasse embora.
O que mais chamava atenção nesse jardim com certeza eram as rosas, parti enraivecido para cima de todas que encontrei, com elas destruídas, certamente alguém viria e eu aproveitaria a oportunidade para fugir. Derrubei dezenas de vasos, as rosas caíam aos montes pelo chão, pisei nos ramos, arranquei pétala por pétala, rasgava e picava as folhas em milhares de pedaços, minha fúria era tanta que nem percebi que enquanto atacava era também golpeado, os espinhos furaram cada centímetro das minhas mãos, meus braços, pescoço e rosto foram cortados, o sangue manchava minhas roupas, caía nas rosas e pingava pelo caminho, mesmo depois de tudo isso nada aconteceu.

Eu estava ofegante, desesperado, cansado e sangrando também, senti o gosto de sangue descer pela garganta, eu iria morrer naquele lugar, envenenado pelos espinhos das roseiras. Esgotado, olhei para a casa que nunca alcancei, nem saberia se estaria a salvo se chegasse até ela, já desorientado, caminhei lentamente até a fonte no centro, morreria, mas tinha feito um belo trabalho destruindo aquele jardim amaldiçoado, entrei na fonte, manchei a água límpida com meu sangue, estendi minhas mãos até o chafariz, aparei a água e bebi, os goles pareciam infinitos, como se fosse a última vez que tomava o elixir da vida, tirei minhas vestes e me banhei na fonte com água tingida de vermelho.
Meu corpo ficaria preso junto as estátuas para sempre, minha mente em devaneio pensava que talvez elas tivessem sido pessoas reais antes de tudo, desistiram de procurar uma saída e morreram. Como em um último ato de uma ópera que termina em tragédia, mergulhei esperei pelo meu fim, mas ao invés de sentir a morte se aproximar, o que eu vi parecia ser um milagre, cristais emergiram e brilhavam na superfície da água, puxando o último ar de meus pulmões, me levantei, senti uma brisa leve a soprar e tocar meu rosto molhado, a lua pairava a cima da mansão, ao olhar para a casa, todas as janelas estavam se abrindo, raios de uma luz extremamente branca emanavam do interior, duas grandes portas se abriram e diante delas uma passarela de mármore ia surgindo, possuía  dezenas de metros e chegava até a fonte, até mim.
Não acreditava no que estava vendo, mesmo assim não pensei em mais nada a não ser levantar e ir em direção a porta, me debrucei sobre o beiral, fiz uma força sobre-humana para sair da fonte. Cambaleante, andei pela passagem e chegando enfim diante das portas abertas, entrei.

Eu estava ofegante, desesperado, cansado e agora sangrando também, senti o gosto de sangue descer pela garganta, eu iria morrer nesse lugar, envenenado pelos espinhos das roseiras. Esgotado, olhei para a casa que nunca alcancei, nem saberia se me salvaria se chegasse até ela, já desorientado, caminhei lentamente até a fonte no centro, morreria, mas tinha feito um belo trabalho destruindo aquele maldito jardim, entrei na fonte, manchei a água límpida com meu sangue, estendi minhas mão até o chafariz e aparei um pouco d’água e bebi, goles infinitos de água, como se fosse a última vez que tomava o líquido dava a vida, tirei minhas vestes e me banhei na fonte, agora com a água tingida de vermelho.

Como em último ato de uma ópera que termina em tragédia, esperei pelo meu fim, mas ao invés de ver a morte se aproximar, o que eu vi parecia ser um milagre, senti uma brisa leve tocar meu rosto, a lua pairava em cima da mansão, ao olhar para a casa, todas as suas janelas estavam se abrindo, no interior, luzes começaram as surgir e como por puro encanto, duas grandes portas se abriram e diante delas uma passarela era feita instantaneamente e chegava até a fonte, até mim.

Não acreditava no que estava vendo, mas mesmo assim não pensei em mais nada a não ser levantar e ir em direção a porta. Cambaleante, me debrucei sobre o beiral, fiz uma força sobre-humana, saí da fonte e caminhei pela passagem, cheguei até as portas abertas e entrei.

O Jardim da Casa Desconhecida

Evelyn Veiga

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