10 de outubro de 2018

Edgar Allan Poe - Poemas

1 - O Corvo  (The Raven)
E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda
No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.
Seu olhar tem a medonha cor de um demônio que sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão há mais e mais,
Libertar-se-á… nunca mais!
– Tradução de Fernando Pessoa
2 – Annabel Lee
“Porque os luares tristonhos só me trazem sonhos
Da linda que eu soube amar;
E as estrelas nos ares só me lembram olhares
Da linda que eu soube amar;
E assim ‘stou deitado toda a noite ao lado
Do meu anjo, meu anjo, meu sonho e meu fado,
No sepulcro ao pé do mar,
Ao pé do murmúrio do mar.”
–  Tradução de Fernando Pessoa
3 – Sozinho (Alone)
Nos tempos de infância nunca vi
Como os outros — nunca vivi
Como os outros — nem pude pegar
Paixões de uma fonte vulgar –
Dela nunca pude revolver
Minha tristeza — nem comover
Meu coração no mesmo caminho –
E tudo que amei — amei sozinho –
4 – Demônio da Perversidade (Imp of the Perverse)
“Não há na natureza paixão mais diabolicamente impaciente como a daquele que, tremendo à beira dum precipício, pensa dessa forma em nele se lançar. Deter-se, um instante que seja, em qualquer concessão a essa ideia é estar inevitavelmente perdido, pois a reflexão nos ordena que fujamos sem demora e, portanto, digo-o, é isto mesmo que não podemos fazer. Se não houver um braço amigo que nos detenha, ou se não conseguirmos, com súbito esforço recuar da beira do abismo, nele nos atiraremos e destruídos estaremos. Examinando ações semelhantes, como fazemos, descobriremos que elas resultam tão-somente do espírito de Perversidade. Nós as cometemos porque sentimos que não deveríamos fazê-lo.”
5  – O Coração Denunciador (The Tell-tale heart)
“Ouvi todas as coisas no céu e na terra. Ouvi muitas coisas no inferno. Como então posso estar louco?” […] 
“Eles estavam zombando do meu horror! — Assim pensei e assim penso. Mas qualquer coisa seria melhor do que essa agonia! Qualquer coisa seria mais tolerável do que esse escárnio. Eu não poderia suportar por mais tempo aqueles sorrisos hipócritas! Senti que precisava gritar ou morrer! — e agora — de novo — ouça! mais alto! mais alto! mais alto! mais alto!
— Miseráveis! — berrei — Não disfarcem mais! Admito o que fiz! – levantem as tábuas! — aqui, aqui! — são as batidas deste horrendo coração!”
6 – William Wilson
“Era Wilson, mas Wilson sem mais sussurrar agora as palavras, tanto que teria sido possível acreditar que eu próprio falava, quando ele me disse:
– Venceste e eu me rendo. Mas, de agora em diante, também estás morto… morto para o Mundo, para o Céu e para a Esperança! Em mim tu existias… e vê em minha morte, vê por esta imagem, que é a tua, como assassinaste absolutamente a ti mesmo.”
7 – O Enterro Prematuro
“Há momentos em que, mesmo aos olhos serenos da razão, o mundo de nossa triste Humanidade pode assumir o aspecto de um inferno, mas a imaginação do homem não é Carathis para explorar impunemente todas as suas cavernas. Ah! A horrenda região dos terrores sepulcrais não pode ser olhada de modo tão completamente fantástico, mas, como os Demônios em cuja companhia Afrasiab fez sua viagem até o Oxus, eles devem dormir ou nos devorarão, devem ser mergulhados no sono ou nós pereceremos.”
8 – A Queda da Casa de Usher
“Durante todo um dia pesado, escuro e mudo de outono, em que nuvens baixas amontoavam-se opressivamente no céu, eu percorri a cavalo um trecho de campo singularmente triste, e finalmente me encontrei, quando as sombras da noite se avizinhavam, à vista da melancólica Casa de Usher. Não sei como foi – mas, ao primeiro olhar que lancei ao edifício, uma sensação de insuportável angústia invadiu o meu espírito. Digo insuportável, pois tal sensação não foi aliviada por nada desse sentimento quase agradável na sua poesia, com o qual a mente ordinariamente acolhe mesmo as imagens mais cruéis por sua desolação e seu horror.”
09 – Berenice
“Desviei involuntariamente a vista daquele olhar vítreo para olhar-lhe os lábios delgados e contraídos. Entreabriram-se e, num sorriso bem significativo, os dentes da Berenice transformada se foram lentamente mostrando. Prouvera a Deus que eu nunca os tivesse visto, tendo-os visto, tivesse morrido! […] Os dentes!. . . Os dentes! Estavam aqui e ali e por toda parte, visíveis, palpáveis. Diante de mim. Compridos, estreitos e excessivamente brancos, com os pálidos lábios contraídos sobre eles, como no instante mesmo do seu primeiro e terrível crescimento. Então desencadeou-se a plena fúria minha monomania e em vão lutei contra sua estranha e irresistível influência. Nos múltiplos objetos do mundo exterior, só pensava naqueles dentes. Queria-os com frenético desejo. Todos os assuntos e todos os interesses diversos foram absorvidos por aquela exclusiva contemplação.”
10 – Um sonho dentro de um sonho (A Dream within a Dream)
TAMERLÃO

Doce consolação nesta hora extrema! 
Tal, Padre, agora não será meu tema... 
Não direi loucamente que um poder 
terreno me liberte do pecado 
sôbre-humano de orgulho, em mim a arder. 
O tempo de sonhar é já passado: 
Dizes que isso é esperança; e a desvairada 
chama é só a agonia de um anseio! 
Se creio na Esperança... Ó Deus! Bem creio... 
Sua fonte é mais divina, mais sagrada... 
Ancião louco eu não quero te chamar, 
mas isso é coisa que não podes dar. 

Conheces de um espírito o segrêdo, 
da soberba atirado em plena lama? 
Herdei, ó coração a palpitar, 
teu quinhão de desprêzo, com a fama, 
a glória consumida, a cintilar 
de meu trono entre as jóias, qual coroa 
infernal. Porque dor alguma o inferno 
pode agora trazer, que me dê mêdo. 
E anseias pelas flores, coração, 
e pelo sol das horas de verão! 
Dêsse tempo defunto o canto eterno, 
com seu soluço intérmino, reboa, 
em teu vazio, nos sons enfeitiçados 
de um dobre doloroso de finados. 

Do que hoje sou, já fui bem diferente. 
Usurpador, obtive, conquistei 
o diadema que cinge a fronte ardente. 
Roma e César não deu a mesma ousada 
herança, que me estava reservada? 
A herança de um espírito de rei, 
para lutar, espírito altaneiro, 
triunfalmente, contra o mundo inteiro. 

Em região montanhosa ao mundo vim. 
As brumas de Taglay pulverizavam, 
à noite, o seu orvalho sôbre mim, 
e acredito que as asas, em violentos 
tumultos, e as tormentas, e os mil ventos, 
em meus próprios cabelos se aninhavam. 

Êsse orvalho, depos, do céu tombando 
(entre noites de sonhos condenados) 
era um toque de inferno sôbre mim, 
enquanto rubras luzes, cintilando 
em nuvens, que oscilavam quais pendões, 
pareciam-me, aos olhos malcerrados, 
do poder régio as predestinações, 
e dos trovões profundos o clarim 
sôbre mim se atirava, proclamando 
que, em humanas batalhas, estentórea 
– criança louca! – a minha voz bradava 
(como minha ala se regozijava 
e ante êsse grito o coração saltava!) 
o grito de combate da Vitória! 

Na fronte sem abrigo se esparzia 
a chuva rude, e o vento me tornava 
desatinado, cego, ensurdecido. 
Era apenas um ente que lançava 
louros em mim, pensava então, e a fria 
fúria do ar fustigante, a meus ouvidos 
cantava a evocação de destroçados 
impérios, o clamor dos capturados, 
o rumor dos cortejos, a canção 
com que aos tronos rodeia a adulação. 

Minhas paixões, desde êsse infausto dia, 
sôbre mim exerceram tirania 
tamanha, que, somente com o poder, 
se pôde o meu caráter conhecer. 
Mas, Padre, então, ali vivia alguém... 
então... na juventude... quando a chama 
das paixões mais se alteia e mais se inflama 
(porque paixões só a juventude tem), 
alguém que soube ver, no peito de aço, 
de uma fraqueza feminil o traço. 

Não tenho têrmos... ai... para dizer 
o quanto é doce o verdadeiro amor! 
Nem tentarei agora descrever 
dessa face lindíssima o primor, 
pois seus contornos são, na minha mente, 
sombras que ao vento vão, volùvelmente. 
Recordo ter-me outrora debruçado 
sôbre folhas de ciência do Passado, 
até que cada letra, tão fitada, 
e cada têrmo se desvanecesse 
e seu próprio sentido se perdesse 
em fantasias e, por fim, em nada. 

Ah! todo o amor bem elas merecia 
e era o meu afeto qual de criança. 
Razão tinham os anjos de a invejar. 
Seu jovem coração era um altar 
em que meus pensamentos e a esperança 
eram o incenso, a oferta que subia 
com pureza infantil, imaculada, 
de seu jovem modêlo copiada. 
Por que os abandonei, pela paixão 
da luz, que inflama e empolga o coração? 

Crescemos... e conosco o amor crescia... 
vagueando na floresta e nos desertos. 
Na tormenta meu peito a protegia 
e quando, amiga, a luz do sol sorria. 
E se ela contemplava os céus abertos, 
sòmente em seu olhar os céus eu via. 

A primeira lição do amor nascente 
está no coração, pois, sob o ardente 
sol, vendo êsses sorrisos sem cuidados, 
rindo de seus brinquedos estouvados, 
eu me lançava no seu seio arfante 
e em lágrimas minha alma se expandia. 
Ah! dizer mais eu não precisaria, 
nem acalmar temores vãos, perante 
quem ficava, sem nada perguntar, 
voltando para mim o quieto olhar. 

E embora merecesse mais que o amor, 
a minha alma impaciente se exaltava 
quando, num cume de montanha, a sós, 
a ambição lhe falava em nova voz. 
Todo o meu ser só nela consistia;
o mundo e tudo quanto êle encerrava, 
na terra, no ar, nos mares, a alegria, 
os quinhões pequeníssimos de dor, 
que eram nôvo prazer, os ideais, 
noturnos sonhos de vaidade impura, 
e as coisas mais sombrias, porque reais 
(as sombras... e uma luz bem mais obscura!) 
nas asas do nevoeiro se evolavam 
e assim confusamente se tornavam 
numa imagem, num nome... um nome... duas 
coisas, unificadas, porque tuas. 

Eu era ambicioso. Já tiveste 
paixões, Padre? Não! Não as conheceste! 
Um trono para mim, filho do lôdo, 
que o mundo dominasse quase todo, 
sonhei, a maldizer a minha sorte. 
Mas, como todo sonho, também êste, 
sob o vapor do orvalho, voaria, 
não viesse da beleza o brilho forte 
que o cumulava, ainda que, se tanto, 
por um minuto, por uma hora, um dia 
pesar-me na alma com dobrado encanto. 

E passeávamos juntos, pela crista 
de elevada montanha, donde a vista 
caía, dos penhascos escarpados 
e altivos, das florestas, nos outeiros 
esparsos, de bosquetes coroados, 
rumorejando com seus mil ribeiros. 
Falava de poder e de vaidade, 
porém mìsticamente, que a verdade 
a ela eu não queria revelar 
no que dizia; e então, em seu olhar, 
talvez eu lesse, descuidadamente, 
um sentimento, do meu próprio irmão. 
O brilho de suas faces parecia, 
para mim, transformar-se em refulgente 
trono; e eu consentir não poderia 
que elas brilhassem só na solidão. 

De grandezas então eu me envolvia 
tomando uma fantástica coroa; 
e não era, contudo, a Fantasia 
que seu manto viera em mim lançar. 
E se entre a humanidade, a turba alvar, 
é o leão da ambição, que se agrilhoa, 
entregue à mão de um domador que o mande, 
não é assim no deserto; lá, o que é grande 
conspira com o terrível e o sem-par 
para as almas com o sôpro incendiar. 

Contempla Samarkand! Contempla-a agora! 
Não é rainha da terra e se alcandora 
sôbre as cidades tôdas? Não lhes traz 
os destinos na mão? E não desfaz, 
solitária e fidalga, tudo quanto 
de glória e fama neste mundo medra? 
Se cair, sua mais humilde pedra 
há de formar de um trono o pedestal. 
Quem é seu soberano? Tamerlão. 
Êsse que os povos viram, com espanto, 
subir, calcando aos pés cada nação, 
um bandido com a coroa real! 

Ó amor humano! Tu, que dás, no mundo, 
o que esperamos vir do céu profundo; 
que cais na alma, qual chuva abençoada 
sôbre a planície adusta e calcinada; 
e, não podendo dar ventura, fazes 
do coração deserto sem oásis; 
tu, idéia que tôda a vida encerra 
em música de sons tão singulares 
e belos, que na selva têm seus lares, 
adeus! adeus! pois conquistei a Terra! 

Quando a Esperança, essa águia da amplidão, 
os altos cimos já não mais avista, 
suas asas se curvam, de mansinho, 
e o olhar se volta, doce, para o ninho. 
Era o sol-pôr; e quando o sol declina 
um desespêro sobe ao coração 
de quem ainda quisera ter à vista 
o esplendor estival da luz solar. 
A alma aspira a bruma vespertina, 
tão cariciosa, atenta a perceber 
o som da treva (ouvido sempre pelos 
que sabem dar-lhe ouvido) a se arrastar, 
como quem quer, em meio a pesadelos, 
fugir de algum perigo, sem poder. 

Que importa brilhe a lua, a lua fria
com seu fulgor mais lúcido e mais forte? 
Seu sorriso e seu brilho são gelados, 
naquelas horas de melancolia, 
como um retrato feito após a morte 
(vendo-o, nem respiramos, assustados). 
E a juventude é como um sol de estio, 
cujo poente é o mais triste, porque então 
já nada mais ignora o coração 
e o que guardar quisemos no fugiu. 
Pareça a vida, pois, qual flor de um dia, 
com a beleza que, esplêndida, irradia. 

Voltei para o meu lar, não mais meu lar,
pois tudo o que fazia assim se fora.
Penetrei no musgoso umbral e embora
fôsse meu passo lento e comedido
veio uma voz da pedra do limiar,
a voz de alguém que u conhecera outrora.
Oh! desafio o inferno a que apresente,
nos seus leitos de fogo, mais ferido
coração, ou desgraça mais pungente!

Eu creio, Padre, eu firmemente creio, 
e bem sei – pois a morte, que me veio 
da longínqua região abençoada
onde não mais existem ilusões, 
vai entreabrindo os rígidos portões 
e cintilam os raios da verdade,
que não vês, através da Eternidade... 
Sim, eu creio que Eblis pôsto havia 
sua armadilha, sob a humana estrada. 
E se não, por que, quando eu me perdia 
no bosque santo dêsse ídolo, o Amor, 
de asas de eneve sempre perfumadas 
com o incenso das ofertas mais sagradas, 
no bosque iluminado intensamente 
pelos raios do céu, nesse bosque onde 
nenhum ser, por mais ínfimo, se esconde 
a seu olhar de águia, abrasador, 
por que, então, a ambição se insinuou, 
sem ser vista, entre os sonhos, a crescer, 
até lançar-se, a rir, ousadamente, 
nas madeixas do Amor, do próprio Amor?
UM SONHO

SONHEI, entre visões da noite escura,
com a alegria morta, mas meu sonho
de vida e luz me despertou, tristonho,
com o coração partido de amargura.

Ah! que não vale um sonho à luz do dia
para aquêle que os olhos traz cravados
nas coisas que o rodeiam e os desvia
para tempos passados?

Aquêle santo sonho, sonho santo,
enquanto o mundo repelia o pária,
deu-me o confôrto, como luz de encanto
a conduzir uma alma solitária.

E embora a luz, por entre a tempestade
e a noite, assim tremesse, tão distante,
que poderia haver de mais brilhante
no claro sol da estrela da Verdade?


Nenhum comentário:

Postar um comentário