25 de outubro de 2020

๐•ฎ๐–”๐–“๐–™๐–”๐–˜: ๐•ป๐–†๐–‰๐–†๐–—๐–Ž๐–† ๐•ท๐–”๐–•๐–Š๐–˜

O dia na padaria mais tradicional da cidade comeรงa como todos os outros, pessoas apressadas que mal se sentam para comer e jรก vรฃo saindo, mas, satisfeitas com o cafรฉ da manhรฃ. Com um balcรฃo imenso, com todos os tipos de pรฃes bolos e doces possรญveis. 

O movimento se mantรฉm durante todo o dia, todos os produtos expostos nos balcรตes sรฃo vendidos, entรฃo durante a noite รฉ preciso fazer mais, รฉ aรญ que o padeiro aparece.

Movendo-se com maestria, o padeiro muito querido pelos clientes, faz com prazer o seu trabalho e tรฃo logo o relรณgio vira a meia-noite, ele se encaminha, animado, para a cozinha, depois de entrar e fechar a porta, o padeiro toma a forma no qual consegue fazer os melhores pรฃes, forma que ninguรฉm desconfia, a versรฃo mais grotesca e macabra, ele se apronta para a melhor tarefa, consagrar os alimentos feitos naquele lugar para o seu Senhor, sempre fiel, o padeiro oferece todas as coisas feitas na padaria para o diabo.

Para o trabalho as roupas jรก nรฃo mais necessรกrias, sรฃo usadas apenas para o deleite dos clientes, tambรฉm nรฃo cabem mais no corpo agora transfigurado, jรก que suas pernas, braรงos e pescoรงo se alongam ao ponto de parecer nรฃo ter mais ossos, assim fica mais fรกcil de se movimentar pela cozinha e usar os ingredientes, estes sรฃo encontrados em um lugar muito diferente, jรก que os consegue tirar de seu prรณprio corpo, um presente dado pelo demรดnio, para que suas matรฉrias-primas nunca se esgotem.

O padeiro usa a sua prรณpria pele, รฉ muito saborosa e vai ajudar a compor a massa, de suas mรฃos saem garras imensas, com elas, arranca a camada adiposa, a coloca na batedeira, junto com ela, sรฃo precisos รกgua e sal, sem problemas para o padeiro, que de sua boca, agora monstruosa, tira os dentes gigantes e afiados, um por um sรฃo moรญdos e transformados em pรณ, com a lรญngua gordurosa e comprida, mastiga a boca desdentada para produzir uma saliva que nรฃo tem fim, ela รฉ a รกgua que vai moldar o pรฃo. 
Para findar o preparo, falta apenas o fermento, o padeiro tem o cabelo tรฃo longo que se espalha pela cozinha, ele os puxa pela raiz e os engole, com o รกcido de seu estรดmago, transforma o cabelo em uma pasta, depois vomita aquele que รฉ o melhor fermento usado na cidade, nenhum outro faz o pรฃo crescer tanto. Enquanto as massas descansam, o corpo despedaรงado do padeiro se regenera, afinal ele trabalha a noite inteira e sempre vai precisar de mais.
Para assar os pรฃes, o melhor forno, de uma fenda no chรฃo, sai um ar escaldante, vindo direto do poรงo infernal, para conseguir fogo, o padeiro corta as prรณprias pernas, as fazendo de lenha, joga embaixo do forno conseguindo labaredas para a noite toda. 
Mesmo sem os membros inferiores, o padeiro nรฃo fica lento, ele usa os longos braรงos para se locomover, pega os pรฃes jรก descansados e os coloca para assar, a noite vai passando e o padeiro continua a trabalhar, usa suas garras para abrir sua barriga e retira seus รณrgรฃos, vai atรฉ o fogรฃo e os coloca na panela para cozinhar, vรฃo se desfazendo, se transformando em geleia para rechear os melhores sonhos aรงucarados.

O dia vem raiando, para terminar o รกrduo trabalho, falta apenas o cafรฉ, para a tarefa o padeiro precisa apenas de uma faca, com um corte limpo e preciso, decepa a prรณpria cabeรงa, que voa pela cozinha, pousando estratรฉgicamente sobre bancada de serviรงo, de lรก ele coordena a queda de seu corpo sobre o fogรฃo, a explosรฃo de seu sangue, vindo de todos os seus vasos sanguรญneos, veias, capilares e artรฉrias extiguem todo o sangue de uma vez, derramando o lรญquido dentro do bule fulmegante, fazendo o sangue ferver instantaneamente, exalando nรฃo o odor ferroso e saguinolento que causa repulsa, mas um aroma adocicado, caracterรญstico dos melhores grรฃos, que acaba invadindo toda a padaria e chamando os clientes para iniciarem mais um dia, indo tomar do mais delicioso cafรฉ e do melhor pรฃo jรก feito.

Padaria Lopes
Evelyn Veiga

21 de outubro de 2020

๐•ฎ๐–”๐–“๐–™๐–”๐–˜: ๐•ฌ๐–˜ ๐•ธ๐–š๐–‘๐–๐–Š๐–—๐–Š๐–˜ ๐––๐–š๐–Š ๐–๐–Ž๐–—๐–†๐–›๐–†๐–’ ๐•ป๐–†๐–™๐–†๐–˜

Eu odiava quando minha avรณ me obrigava a ir buscar restos no matadouro, alรฉm de ser longe de casa, ter que andar a pรฉ debaixo de um sol escaldante ou dependendo da รฉpoca do ano poderia chover muito e eu ter que caminhar por estradas enlameadas, ainda tinha aqueles malditos restos, eles ficavam numa caรงamba, tinha que prestar bastante atenรงรฃo pra nรฃo pegar os pedaรงos estragados, no mais, conseguia pegar ossos com um pouco de carne de costela e carne de pescoรงo. Eu voltava com o balde pesado e sujo, fazia vรดmito atรฉ chegar em casa, ficava enjoada a semana toda, sรณ de lembrar, perdia completamente a fome.

ร€s vezes, por ficar limpando a casa, eu acabava indo mais tarde, aproveitava para fugir do sol ou da chuva, mas como era muito longe, acabava chegando no matadouro quase no fim da tarde, tendo que voltar no comeรงo da noite, o que poderia ser perigoso. Quando isso acontecia, eu apertava o passo e ia por uma estrada que dava nos fundos do matadouro, que deixava a viagem um pouco mais curta, quando chegava por aquele lado, eu via o que tinha de pior, carcaรงas podres, sangue, couro cheio de bicho, larvas, moscas varejeiras, no chรฃo escorria um caldo extremamente repugnante, no qual boiava tudo aquilo, atraindo urubus imensos, mas como nรฃo tinha jeito, eu ia assim mesmo.

Minha avรณ sempre dizia para nรฃo pegar essa estrada perto do morro, pois era um caminho ermo, poderia ter alguรฉm ร  espreita e era na mata onde moravam os seres sobrenaturais, os espรญritos por assim dizer, pois estรกvamos no fim do mรชs de outubro, dia das bruxas, adentrando o dia de todos os santos e o dia de finados, dias nos quais “as almas saiam de dentro da terra e o diabo as mandava vagar pela floresta atrรกs de almas indefesas”, dizia ela para me assustar, eu acho.

O que mais tem em Valador sรฃo casos bizarros, os homens contavam histรณrias malucas enquanto bebiam no bar e as beatas conversavam na calรงada depois da missa, todos  adoravam comentar que viram a mula sem cabeรงa, o lobisomem, falavam sobre “o menino do pescoรงo virado”, “as meninas penduradas pelos pรฉs” e as bruxas mais famosas da cidade, “as mulheres que viravam patas”.

Eu ouvia minha avรณ falar sobre elas, mas eu nunca tinha visto, na verdade, acho que ninguรฉm nunca viu, eu nรฃo sabia realmente o que era uma bruxa, mas a maioria dizia que eram mulheres que faziam feitiรงos e pediam coisas para o diabo em troca das almas delas ou das almas de outras pessoas.

Pela crendice, as mulheres foram amaldiรงoadas por praticarem magia e que no dia das bruxas se transformavam em patas, saiam voando pela cidade e conseguiam ouvir todas as conversas e segredos, por isso as vezes, alguรฉm se atrevia a procurar por elas no morro pra ver se elas sabiam de alguma coisa de alguรฉm importante, elas tambรฉm faziam feitiรงos para aqueles que desejavam obter amor ou morte de alguรฉm, dizem que era assim que elas conseguiam viver.

Um dia, me atrasei para ir buscar os restos, minha avรณ disse para ir correndo porque aquele era um dia muito ruim para se estar na rua, que as almas castigadas sairiam pela noite e que de vez em quando elas levavam alguma pessoa viva para o inferno por engano. Ao ouvir aquilo, me apressei em chegar no matadouro, catar o que encontrasse, sair bem rรกpido de lรก e voltar para casa. Jรก ficando escuro, peguei o balde que dessa vez nรฃo estava tรฃo pesado porque as pessoas jรก tinham chegado na minha frente, entรฃo para cortar caminho, peguei a estrada dos fundos, que ficava paralela ao rio e que chegava ao pรฉ do morro.

Tinha chovido no dia anterior, naquele trecho havia muita lama, nรฃo tinha luz de nenhum poste por perto, mas o cรฉu estava brilhando, de tรฃo limpo, as estrelas e a lua que empurravam o sol iluminavam o caminho, tambรฉm conseguia me orientar ao avistar algumas casas, com os pequenos fogareiros se ascendendo, um pouco mais a frente tinha uma casa maior com cinco janelas, cada uma com candeeiro, ao lado, no quintal, uma grande fogueira e em volta dela estavam cinco mulheres.

Naquele momento eu parei, fiquei com uma sensaรงรฃo estranha, como se algo me chamasse e em vez de ir embora pela estrada, peguei uma trilha que ia direto aquela casa, caminhei um pouco, machuquei minhas pernas nos galhos caรญdos mas cheguei bem perto, dei de cara com uma cerca cheia de espinhos gigantes, mas com algumas frestas e foram por elas que eu assisti  algo que jamais poderei descrever totalmente.

Reunidas em volta da fogueira, as mulheres estavam sem nenhuma roupa, falando algo que parecia ser uma reza, uma cantiga ou como minha avรณ costumava dizer, um feitiรงo, como se estivessem invocando alguma coisa, eu pensei que poderiam estar pedindo coisas boas, mas foi apenas um pensamento passageiro, pela cena, pediam algo que nรฃo pertencia a este mundo. De mรฃos dadas, as mulheres comeรงaram a girar em volta do fogo e em uma espรฉcie de transe, diziam:

“Que venha claro como o dia
O segredo na noite revelado
Nรณs voamos por cima
Arvoredo vai por baixo”

Depois de repetirem o verso inรบmeras vezes, uma torrente de ar balanรงou as รกrvores, as mulheres quebraram o cรญrculo, soltaram um grito conjunto que arrepiou todo o meu corpo, espantando atรฉ os pรกssaros das รกrvores, de repente, todas elas comeรงaram a flutuar lentamente, indo em direรงรฃo a lua, seus corpos iam ficando contorcidos, deformados, o tronco a diminuir, as costelas pareciam ter sido quebradas e compactadas ao tronco, junto as entranhas, dava para ouvir o barulho de ossos estalando, os joelhos viraram para trรกs, juntando-se as coxas, o pescoรงo se alongava, repuxando a cabeรงa e empurrando o peito para frente, a pele ia se encrespando e dos poros saiam penas pretas, enquanto que no rosto, a boca e o nariz se uniam, tomavam forma de um bico rijo e cinza, os olhos tomavam aspecto preto e amarelado, os cabelos caรญram e no topo da cabeรงa ficaram penas avermelhadas.

Por fim, os braรงos jรก sem as mรฃos mostravam as longas asas cobertas de penas, restara somente da forma humana parte da voz, que misturadas aos grasnados de um pato, voltaram conjurar o feitiรงo. Assim as mulheres transmutadas em patas, bateram as asas e levantaram voo por sobre as รกrvores.

Depois de assistir todo esse ritual, nรฃo tinha outra coisa a fazer a nรฃo ser sair correndo, nem vi para onde estava indo, tropecei e deixei cair o balde com os pedaรงos de osso que saรญram rolando pela trilha, catei os que estavam a mรฃo, cheios de terra e folhas, coloquei de volta no balde, pulei o barranco e consegui chegar de volta na estrada de terra, subi a ladeira em dois segundos e dobrei a esquina em direรงรฃo ร  Avenida.

Nunca corri tanto, eu olhava para cรฉu jรก totalmente escuro para ver se alguma pata estava atrรกs de mim, sem fรดlego passei pela praรงa e finalmente dobrei na rua cinquenta, a minha casa era a รบltima. Ao ver os vizinhos conhecidos, parei de correr, ofegante, pensando que minha avรณ ia me esfolar, alรฉm de jรก ser muito tarde, estava toda arranhada, lasquei o balde, perdi metade dos pedaรงos de carne lรก na mata e os que sobraram estavam sรณ a lama. 

Eu estava perdida, ai de mim se dissesse que a razรฃo por ter chegado naquele estado fosse por ter parado em algum lugar, ainda mais chegar dizendo que vi bruxas danรงando e invocando o diabo, que a histรณria era verdadeira, nem pensar, era melhor falar que algum cachorro correu atrรกs de mim, me atacou e eu rolei com ele, balde e tudo pelo mato, era melhor inventar isso do que dizer que eu tinha acabado de ver as mulheres que viravam patas.

Quando cheguei em casa, entrei pela cozinha, larguei o balde imundo, enchi um copo d’รกgua direto da moringa e enquanto tomava tudo em um gole sรณ, eu tremia, minha mente voltava para aquela cena, entรฃo, minha avรณ chegou, parada na porta olhava para mim e eu ao olhar de volta para ela, notei em seu semblante, algo que fez ficar paralisada, porque ao invรฉs de estar com raiva, ela estava rindo, levantou a mรฃo e com o braรงo estendido, apontou para o calendรกrio pregado na parede, era 31 de Outubro.

As Mulheres que viravam Patas
Evelyn Veiga

10 de outubro de 2020

๐•ฎ๐–”๐–“๐–™๐–”๐–˜: ๐•บ๐–˜ ๐•ฎ๐–†̃๐–Š๐–˜ ๐–‰๐–Š ๐–๐–†๐–‘๐–†๐–‰๐–”๐–—

Ao tentar cortar caminho para fugir de uma tempestade e chegar logo em sua casa, uma mulher passou por engano por um atalho que levava a cidade de Valador, um lugar afastado, cercado por um grande rio, com habitantes de expressรฃo carrancuda e pouco hospitaleiros, poucos eram os que viajam atรฉ lรก, pois se ouviam inรบmeras histรณrias bizarras e casos inexplicรกveis de pessoas que iam e nรฃo regressavam, a prรณpria mulher tinha receio de sequer cruzar em frente a ponte que levava atรฉ a cidade.
De repente no meio da estrada, surgiu uma caixa, como se tivesse sido colocada lรก de propรณsito, o objeto inesperado fez a mulher frear bruscamente, ao descer do carro para ver o que tinha na caixa, encontrou trรชs pequenos cachorros abandonados e pensara que provavelmente algum morador perverso de Valador,  tivera realizado tamanha maldade e decidiu levรก-los para casa com ela.
Os cรฃes eram alegres e barulhentos, latiam para tudo e todos, tinham os pelos completamente pretos, eram do mesmo tamanho, pareciam ser um รบnico cachorro de tรฃo iguais. Logo se adaptaram a casa e conquistaram a nova dona, e passaram a dormir na cama com ela. Mas, nรฃo demorou muito tempo, depois de chegar dessa viagem, para que a mulher comeรงasse a se sentir mal.
A mulher passou a manifestar uma doenรงa desconhecida, com sintomas terrรญveis e paralisantes, nenhum mรฉdico que consultara, conseguiu um diagnรณstico e em pouco tempo, a doenรงa idiopรกtica, corroera o fรญsico, a disposiรงรฃo e a lucidez, sua mente divagava, seu corpo ficara cada vez mais estรกtico, submerso em brumas, enquanto dormia, entrava em um estado de torpor e saรญa de sua boca, gritos com notas mรณrbidas e discrepantes de agonia.
Ao vagar pela casa, a mulher foi adquirindo um estado de semiconsciรชncia, era como um som distante, uma sombra que se esgueirava pelas paredes, nรฃo tinha como fazer qualquer atividade, restaram para lhe fazer companhia, seus trรชs pequenos cรฃes. 
Com o passar dos dias, a mulher nรฃo conseguia mais caminhar como antes, e ficava a maior parte do tempo na cama. Ela percebera que estranhos eventos comeรงaram a ocorrer, os cรฃes antes bagunceiros, adotaram uma postura diferente, sisudos, farejavam o ar e olhavam paras as quinas, como se alguรฉm ali estivesse, nรฃo se alimentavam e ao invรฉs de dormirem com a dona, faziam uma estranha vigรญlia, nรฃo subiam mais na cama, ficavam no chรฃo, um ao lado esquerdo, outro ao lado direito e o terceiro aos pรฉs do leito, esperavam a mulher adormecer e ficavam atentos a aqueles ruรญdos que saรญam de dentro do corpo que estava tomando um aspecto disforme.
Por fim a mulher nรฃo levantara mais, apenas gemia, gritava e se contorcia, de sua respiraรงรฃo saรญa um odor purulento, de seus poros, suor cinza, de sua boca, saliva negra e quente. Os cรฃes continuavam a vigรญlia junto a cama e observavam a mulher que tossia, arrotava e cuspia uma lama pestilenta, cujas nรณdoas se espalhavam pelos lenรงรณis.
Os cรฃes entรฃo se levantaram e comeรงaram a uivar incessantemente, olhavam para as quinas e para o teto, lรก estava uma sombra que nรฃo possuรญa forma humana, mas sim de um cรฃo, pingava de seu focinho, escorria pelos dentes e lรญngua uma quantidade infinita de larvas raquรญticas, que caรญam em cima do corpo da mulher. Foi nesse momento que se ouviu um som que transcende a voz humana e que somente os cรฃes puderam decifrar, a sombra dizia de maneira ininterrupta: “Comam!"
E assim os cรฃes o fizeram, em um รบnico salto, chegaram ao alto da cama onde jazia a mulher, ao sentir a presenรงa de seus tรฃo amados cachorros, abrira os olhos, mas nรฃo conseguia se mexer, ao tentar falar saรญa apenas bolhas de chorume e seu rosto e corpo coberto pelas larvas, queimava e a pele se transformava em feridas.
A matilha comeรงara a se alimentar, os cรฃes sob as ordens da sombra monstruosa, destroรงaram pernas e braรงos, fuรงando a barriga, rasgando a pele e estourando as vรญsceras, um banquete com uma melodia infernal, de cheiro indescritรญvel e visรฃo aterradora, os cรฃes nรฃo pararam de comer as larvas, as entranhas e os ossos da mulher e mesmo sem traqueia, cordas vocais, laringe e pulmรตes, ainda gritava e rosnava sons de outro mundo.
Ao amanhecer, depois de uma noite de pesadelo, tamanho foram os barulhos medonhos e desconhecidos que ouviram, os vizinhos chegaram ร  casa da mulher e lรก viram e que nenhuma palavra seria capaz de transmitir aquela cena, pois nรฃo fazia parte de uma coisa humana, com odor repugnante, a casa estava tomada pelas larvas, nรฃo eram mais raquรญticas, mas grandes, gordas, que exalavam a morte e expeliam a peste por todos os lados. Nem a mulher, nem os cรฃes foram encontrados.
OS CรƒES DE VALADOR
Evelyn Veiga

6 de outubro de 2020

๐•บ ๐•ฒ๐–Ž๐–Œ๐–†๐–“๐–™๐–Š ๐•ฐ๐–Œ๐–”๐–Ž́๐–˜๐–™๐–† - ๐•บ๐–˜๐–ˆ๐–†๐–— ๐–‚๐–Ž๐–‘๐–‰๐–Š

Toda tarde, quando vinham da escola, as crianรงas costumavam brincar no jardim do Gigante.Era um jardim grande e gracioso, com grama verde e macia. Aqui e ali, sobre a grama, destacavam-se flores lindas como estrelas, e havia doze pessegueiros que, na primavera, desabrochavam em delicadas flores em tons de rosa e pรฉrola, e no outono davam frutos deliciosos. Os pรกssaros pousavam nas รกrvores e cantavam com tanta doรงura que as crianรงas costumavam parar as brincadeiras para ouvi-los.
— Como somos felizes aqui! — gritavam umas para as outras.
Um dia, o Gigante voltou. Ele fora visitar um amigo, o ogro da Cornualha, e ficara com ele por sete anos. Terminados os sete anos, ele havia dito tudo o que tinha a dizer, pois seu assunto era limitado, e decidiu voltar ao prรณprio castelo. Quando chegou, viu as crianรงas brincando no jardim.
— O que estรฃo fazendo aqui? — gritou com uma voz muito รกspera, e as crianรงas fugiram.
— Meu jardim รฉ meu jardim — disse o Gigante. — Qualquer um consegue entender isso, e nรฃo vou deixar que ninguรฉm alรฉm de mim brinque nele.
Entรฃo, ele construiu um muro alto ao redor do jardim e colocou uma placa de advertรชncia.
Invasores serรฃo castigados!
Era um Gigante muito egoรญsta.
As pobres crianรงas nรฃo tinham mais onde brincar. Tentaram brincar na estrada, mas era muito poeirenta e cheia de pedras duras, e elas nรฃo gostaram. Costumavam passear em torno do muro alto quando as aulas terminavam, conversando sobre o belo jardim lรก dentro.
— Como รฉramos felizes lรก — diziam umas ร s outras.
Entรฃo chegou a Primavera, e em todo o paรญs havia florzinhas e passarinhos. Somente no jardim do Gigante Egoรญsta ainda era Inverno. Os pรกssaros nรฃo queriam cantar lรก porque nรฃo havia crianรงas, e as รกrvores se esqueceram de florescer. Um dia, uma linda flor ergueu a cabeรงa da grama, mas, quando viu a placa de advertรชncia, teve tanta pena das crianรงas que se recolheu de volta ร  terra e foi dormir. As รบnicas pessoas que ficaram satisfeitas foram a Neve e a Geada.
— A Primavera esqueceu este jardim — gritaram elas —, entรฃo vamos morar aqui o ano todo.
A Neve cobriu a grama com seu grande manto branco e a Geada pintou todas as รกrvores de prata. Depois, convidaram o Vento Norte para ficar com elas, e ele veio. Estava envolto em peles, rugiu o dia inteiro pelo jardim e derrubou os chapรฉus das chaminรฉs.
— Que lugar encantador — disse ele —, precisamos convidar o Granizo para nos visitar.
Entรฃo o Granizo veio. Todos os dias, por trรชs horas, ele sacudia o telhado do castelo atรฉ quebrar a maior parte das telhas de ardรณsia, depois corria por todo o jardim o mais rรกpido que conseguia. Vestia cinza e seu hรกlito era como gelo.
— Nรฃo consigo entender por que a Primavera estรก tรฃo atrasada — disse o Gigante Egoรญsta, sentado ร  janela, olhando para o jardim branco e frio. — Tomara que o tempo mude.
Mas a Primavera nunca veio, nem o Verรฃo. O Outono deu frutos dourados a todos os jardins, mas, ao jardim do Gigante, nรฃo deu nenhum.
— Ele รฉ muito egoรญsta — disse o Outono.
Por isso, era sempre Inverno lรก, e o Vento Norte, o Granizo, a Geada e a Neve danรงavam entre as รกrvores.
Uma manhรฃ, o Gigante estava deitado acordado na cama quando ouviu uma linda mรบsica. Soou tรฃo doce aos seus ouvidos que ele pensou que deviam ser os mรบsicos do Rei a passar. Na verdade, era sรณ um pequeno pintarroxo cantando do lado de fora da janela, mas fazia tanto tempo desde que o Gigante ouvira um pรกssaro cantar em seu jardim que parecia a mรบsica mais bonita do mundo. Entรฃo o Granizo parou de danรงar sobre a cabeรงa dele, e o Vento Norte deixou de rugir, e um perfume delicioso o alcanรงou atravรฉs da janela aberta.
— Creio que a Primavera finalmente chegou — disse o Gigante, pulou da cama e olhou para fora.
O que ele viu?
Teve uma visรฃo magnรญfica. Atravรฉs de um pequeno buraco no muro, as crianรงas haviam entrado e estavam sentadas nos galhos das รกrvores. Em todas as รกrvores que ele podia ver havia uma criancinha. E as รกrvores ficaram tรฃo felizes por ter as crianรงas de volta que se cobriram de flores e balanรงaram os braรงos delicadamente acima da cabeรงa dos pequeninos. Os pรกssaros voavam e gorjeavam com prazer, e as flores espiavam por entre a grama verde e riam. Era uma cena adorรกvel, mas num canto ainda era Inverno. Era o canto mais distante do jardim, e nele havia um garotinho. Era tรฃo pequeno que nรฃo conseguia alcanรงar os galhos da รกrvore e vagava em torno dela, chorando amargamente. A pobre รกrvore ainda estava muito coberta de Geada e Neve, e o Vento Norte soprava e rugia acima dela.
— Suba, garotinho! — disse a รrvore, e inclinou os galhos o mais baixo que pรดde; mas o menino era pequeno demais.
E o coraรงรฃo do Gigante se derreteu enquanto ele olhava para fora.
— Como fui egoรญsta! — disse ele. — Agora sei por que a Primavera nรฃo veio para cรก. Vou colocar aquele pobre garotinho no alto da รกrvore e depois derrubar o muro, e meu jardim serรก o parquinho das crianรงas para sempre.
Ele realmente lamentava muito o que havia feito. Assim, desceu a escada, abriu a porta da frente delicadamente e saiu para o jardim. Mas, quando as crianรงas o viram, tiveram tanto medo que fugiram, e o jardim voltou a ser Inverno. Sรณ o garotinho nรฃo correu, pois seus olhos estavam tรฃo tomados de lรกgrimas que ele nรฃo viu o Gigante chegar. E o Gigante aproximou-se por trรกs dele e o pegou gentilmente na mรฃo, e o colocou no alto da รกrvore. E nesse instante a รกrvore abriu todas as suas flores, e os pรกssaros vieram e cantaram nela, e o garotinho esticou os braรงos, lanรงando-os ao redor do pescoรงo do Gigante, e o beijou. E as outras crianรงas, quando viram que o Gigante nรฃo era mais malvado, voltaram correndo, e com elas veio a Primavera.
— Agora o jardim รฉ seu, pequeninos — disse o Gigante. Pegou um grande machado e derrubou o muro.
E quando as pessoas foram ao mercado, ร s doze horas, encontraram o Gigante brincando com as crianรงas no jardim mais bonito que jรก tinham visto.
Durante todo o dia elas brincaram. ร€ noite, foram se despedir do Gigante.
— Mas onde estรก seu coleguinha? — perguntou ele. — O garoto que eu coloquei na รกrvore.
O Gigante amava mais esse menino porque ele o beijara.
— Nรฃo sabemos — responderam as crianรงas. — Ele foi embora.
— Vocรชs devem dizer a ele para vir aqui amanhรฃ com certeza — disse o Gigante. Mas as crianรงas disseram que nรฃo sabiam onde ele morava e nunca o tinham visto antes; o Gigante ficou muito triste.
Toda tarde, quando as aulas terminavam, as crianรงas vinham brincar com o Gigante. Mas ninguรฉm nunca mais viu o menino que ele amava. O Gigante era muito gentil com todas as crianรงas, porรฉm tinha saudades do seu primeiro amiguinho e sempre falava dele.
— Como eu gostaria de vรช-lo! — dizia com frequรชncia.
Os anos se passaram e o Gigante ficou muito velho e frรกgil. Nรฃo conseguia mais brincar, por isso, sentava-se numa enorme poltrona, observava as crianรงas em suas brincadeiras e admirava o jardim.
— Tenho muitas flores bonitas — dizia ele. — Mas as crianรงas sรฃo as flores mais lindas de todas.
Numa manhรฃ de inverno, ele olhou pela janela enquanto se vestia. Agora, nรฃo detestava o Inverno, pois sabia que era apenas a Primavera adormecida e que as flores estavam descansando.
De repente, esfregou os olhos, admirado, e olhou e olhou. Com certeza era uma visรฃo maravilhosa. No canto mais distante do jardim, havia uma รกrvore coberta de lindas flores brancas. Seus galhos eram todos dourados, e frutas prateadas pendiam deles, e embaixo dela estava o menino que ele havia amado.
Para o andar de baixo correu o Gigante com grande alegria e sa­iu para o jardim. Correu pela grama e se aproximou da crianรงa. E, quando chegou bem perto, seu rosto ficou vermelho de raiva e ele disse:
— Quem se atreveu a ferir-te? — Pois na palma das mรฃos da crianรงa havia a marca de dois pregos, e marcas iguais em seus pezinhos. — Quem se atreveu a ferir-te? — gritou o gigante. — Dize-me, que eu hei de pegar minha grande espada e matรก-lo.
— Nรฃo! — respondeu a crianรงa. — Mas estas sรฃo as feridas do Amor.
— Quem รฉs tu? — perguntou o Gigante, e foi tomado por uma estranha reverรชncia, e se ajoelhou diante da crianรงa.
E a crianรงa sorriu para o Gigante e disse:
— Um dia, vocรช me deixou brincar no seu jardim; hoje, virรก comigo ao meu jardim, que รฉ o Paraรญso.
E, quando as crianรงas correram naquela tarde, encontraram o Gigante morto debaixo da รกrvore, todo coberto de flores brancas.

Audioconto Narrado por Guilherme Briggs

O narrador de O Gigante Egoรญsta รฉ Guilherme Briggs, ator, dublador, diretor de dublagem, locutor, tradutor, desenhista, youtuber e blogueiro brasileiro. Foi a voz de Buzz Lightyear, de Toy Story, Geralt de Rivia, na sรฉrie da Netflix The Witcher, Mickey Mouse (desde 2009), Cosmo, de Os Padrinhos Mรกgicos, Superman em A Liga da Justiรงa e dezenas de outros personagens amados da cultura pop. O tom grave da voz do Gigante foi criada pelo prรณprio dublador e o conto foi escolhido para explorar seu icรดnico timbre. 

Sobre o Autor
OSCAR WILDE era um alto e simpรกtico escritor nascia em 1854, em Dublin. Wilde, que mais tarde ficaria conhecido por suas obras O Retrato de Dorian Gray e O Fantasma de Canterville, era orgulhoso de sua terra natal, a Irlanda. 
Escreveu o livro The Happy Prince and other Fairy Tales em 1888, de onde O Gigante Egoรญsta foi traduzido. O conto, tรฃo famoso que ganhou uma animaรงรฃo em 1972, conta sobre um gigante que nรฃo queria crianรงas em seu jardim. Porรฉm, durante um longo inverno, seu coraรงรฃo comeรงa a amolecer, atรฉ que uma das crianรงas realmente toca sua bondosa alma. A histรณria pode ser vista como um encontro gentil entre o paganismo celta e o cristianismo na Irlanda e em terras gaรฉlicas. 
O cristianismo cรฉltico comeรงou no sรฉculo V e tinha tradiรงรตes รบnicas, diferentes das romanas. Como o prรณprio autor nรฃo se considerava catรณlico atรฉ horas antes de sua morte, รฉ possรญvel que este conto seja tambรฉm uma homenagem ร  sua mรฃe, Lady Wilde. De toda forma, a histรณria de redenรงรฃo e amor do Gigante tornou este conto um clรกssico de Wilde.